by OrCa | Abr 16, 2020 | Poemas, Quotidiano delirante |
Continuo com grandes dúvidas quanto à necessidade de um poema… Mas o que é certo é que lá vou tropeçando em palavras que se juntam sem pedir licença. Desta vez, por diversão feicebuquiana (com a Rosário Freitas) dei por mim agricultor… e surgiu isto:
POEMA PARA O DIA DE AMANHÃ
certo dia plantei uma metáfora
no húmus de vaga ideia
que sem saber me aflorara
adubei-a a réstias de inspiração
e protegia-a de agruras de ventos crus
ou de fera maresia
quando vi que enraizara
enxertei-lhe um soneto lento
de rima cadenciada
a meia altura da base
até um ponto incerto
algures entre o desconhecimento
e coisa nenhuma
só para ver se florescia
cerquei-a de vivências torpes
de mal-queridas verdades
de atropelos e más sortes
mas também de três sorrisos
um de papoila
outro estrela
e outro de ouvir o mar
onde o tempo esmorecia
e quando chegou Abril
já muitos anos depois
de um tempo de clausura
vi a aventura crescer
direita ao céu
perturbante
em cada folha uma pena
em cada fruto um poema
e Abril acontecia.
– Jorge Castro
em tempos de covid19, de 16 de Abril de 2020
by OrCa | Abr 6, 2020 | Lazer, Quotidiano delirante, Serviço público |
Hoje está a dar-me mais para o serviço público. E, assim sendo, publico algo que vimos fazendo cá por casa… pelo menos até que os açambarcadores não limpem a farinha toda dos mercados. Segue imagem do produto final, que aperfeiçoamos a cada dia que passa e que está ao alcance de (quase) todas as bolsas. Apresento, também, a receita, em forma de exercício «enquadrado». Trata-se então do PÃO CASEIRO CONFINADO:
ontem eu fiz um pãozinho
hoje um pãozinho farei
e amanhã devagarinho
faço o pão como eu cá sei
junto à farinha algum sal
junto ao sal algum fermento
e misturo o farinhal
amassando a meu contento
e depois de levedar
ponho o chouriço e o toucinho
embrulho tipo folar
e espero um bocadinho
o bocado já passado
toca de ir para o forno
que não esteja assanhado
p’ra não queimar o contorno
passada uma meia horita
e depois de arrefecer
um tintol que me espevita
… e então é só comer!
– Jorge Castro
06 de Abril de 2020
NOTA DO AUTOR – Pode, até, distribuir-se pela vizinhança, atirando-o de janela a janela. Para tal, deve moldar-se a massa em forma de disco voador, como quem brinca na praia…
by OrCa | Mar 29, 2020 | Crónicas, Opinião - pensamento crítico, Quotidiano delirante |
São oito horas e dez minutos da
manhã. Espreguiço-me na cama. Hoje até era capaz de ir dar um passeio pela
praia de Carcavelos mas, como não tenho cão, não sei se posso passear com a
minha gata. Mas receio que ela não esteja pelos ajustes, tão dada que é ao
livre arbítrio. Além disso, na praia nem se deve passear o cão, mas enfim… Com
a minha companheira presumo que não posso. Pelo menos, não está anunciado no
Estado de Emergência meiguinho que nos calhou em sorte e, se não está, é melhor
não tentar essa sorte.
Levanto-me para as rotinas matinais.
Dirijo-me ao espelho da casa de banho e reconheço vagamente o tipo que está ali
a olhar para mim, a quem cumprimento, com um esgar um pouco despenteado,
confesso.
Abro, em rotina, as portadas da
casa toda, confirmando que a minha companheira já se adiantou no pequeno-almoço,
como tem vindo a ser hábito ultimamente, pois fico até tarde repartido entre a
televisão e o computador, só reparando, então, que o dia está bonito. Ficar
acordado até tarde é no que dá: levantar tarde e perder o amanhecer. Assim vai
o desequilíbrio do meu mundo… Ainda por cima, fui informado de que dormir pouco
fragiliza o sistema imunológico.
O confinamento, entretanto, tem
aspectos curiosos: temos tempo para pensar. Desde as mais sublimes altitudes
até à mais comezinha reflexão. Da salvação do mundo até à limpeza do excremento
do cão que um vizinho passeante deixou à minha porta, que a clausura tem as
suas fugas e dádivas inopinadas.
Tomo o pequeno-almoço visitado,
como habitualmente, pela passarada que se habituou a partilhá-lo connosco.
Bastaram umas poucas sementes diárias e restos de pão rotinadamente colocados
num comedouro improvisado para lhes comprar uma confiança relativa, mas muito
aprazível.
Não devemos, no entanto, abusar
deste subsídio, pois interessa que a passarada não se desabitue de colher o
pão-deles-de-cada-dia, não vá dar-se o caso de lhes faltar, inopinadamente, o
fornecedor e eles ficarem sem saber como se amanhar. E este tempo não está para
dados adquiridos nem hábitos de calaceirice. E isto vale para o ser humano como
para o pardal.
Há coisas a fazer, claro. Cortar
a sebe, aparar a relva, retirar ervas daninhas, cortar e armazenar lenha obtida
de móveis velhos, fazer pão, sei lá que mais… O que vou cumprindo, calma e
apaziguadamente. E, outra vez, essas tarefas propiciam a reflexão constante que
antes refiro.
Dou por mim a matutar que, numa
escassa quinzena, já fui informado de que devia usar luvas de protecção e de
que não as devia usar; por outro lado, que devia usar máscara e, logo mais, que
seria melhor não a usar; que a desinfecção dos pavimentos é crucial mas, as
mais das vezes, é um esforço inútil…
Recentemente, colhi até a
informação de que usar barba era contraproducente. Presumo, entretanto, que esta
situação se referirá prioritariamente à população masculina. Mas fico
desconfortável, como é evidente. É que se, amanhã, vierem contradizer este
ditame, vai levar-me uma data de tempo a recompor a pelagem.
Assisti a um frenético
açambarcamento do papel higiénico como se todos padecessem de infernal diarreia
e ao desaparecimento do pão fresco… que vem depois a aparecer, bolorento, nos
caixotes do lixo. Façam açorda, pelo menos, ó alminhas aflitas!
O distanciamento ao meu
semelhante (leia-se este semelhante na perspectiva de ser alguém tão atreito
como eu a captar o malfadado vírus), tem vindo a aumentar. Começou por um
discreto e comedido «distanciamento razoável» para o imperativo de um metro e a
última versão já implica um mínimo de dois metros. Hoje, de manhã, a fila/bicha
para o supermercado, sempre percursor, que frequento já atinge os cento e
cinquenta metros… para uma dúzia mal contada de clientes em espera.
Como o ventinho tem estado
fresco, talvez aconteça que aquela espera propicie, até, uns resfriadozitos
para dar mais sabor à vida. Nada de preocupante, embora, e sempre ficamos com
um entretimento doméstico complementar.
Tenho, entretanto, uma angústia
que me acompanha nestes dias de clausura: por que não ir fazendo testes de
detecção da Covid 19 a toda a população? Não há testes que cheguem? Pois
constou-me que já soluções preconizadas por cientistas portugueses, vejam lá! E
com possibilidade de produção ilimitada.
Mas o que mais me tem marcado é,
sem margem para dúvidas, a incidência da maleita na população sénior, na qual
me vou incluindo, valha a verdade.
Esta malévola discriminação só
pode ter sido congeminada por algum pequeno deus menor e insidioso com
tendência para a Economia, tipo Lagarde e outras abencerragens.. Mas o certo é
que a avassaladora percentagem de óbitos recai, sem margem para dúvidas, nos
escalões etários a partir dos setenta anos.
E isto, então, traz-nos para um
campo em que nem a ironia, nem o sarcasmo, nem o bom humor têm lugar: os
famigerados lares da terceira idade.
Num mundo que se está objectiva e
institucionalmente nas tintas para os anciãos de cada sociedade, a recolha e
resguardo dos cidadãos em fim de vida e, mormente, na chamada velhice desvalida,
vai competindo aos lares. Instituições privadas, quase todos, sujeitos,
portanto, às «regras de mercado», com pessoal de preparação e competências
profissionais mais do que duvidosas em tantos e tantos casos que todos
conhecemos.
Como poderá alguém manifestar
surpresa por serem estes locais os coios onde prolifera a contaminação?
Com um mercado de trabalho
canalha – que também (quase) todos conhecemos – chega um momento, na vida de
cada família, em que os filhos não têm condições para acolher e tratar dos pais,
por mais entes queridos que sejam. E não necessariamente por razões económicas
directas, mas por razões de vida que – outra vez – todos conhecemos e os que
não conhecem, se procurarem um pouco nas respectivas famílias, logo encontram e
com múltiplas facetas.
E isto traz-nos ao remate desta
minha frágil e canhestra crónica:
Que este confinamento a que
estamos obrigados, que fez surgir à luz do dia tantas e tão clamorosas
carências de âmbito social, em todo o mundo, ainda que em certos países mais do
que noutros por consabidas razões, que este confinamento, dizia, nos alerte
para a necessidade de encarar o problema da chamada terceira idade com a
dignidade que ele merece.
Que interiorizemos e obriguemos
os respectivos governos a criar uma rede de cuidados a prestar aos anciãos tão
relevante como o nosso Serviço Nacional de Saúde no tratamento das doenças e na
manutenção da Saúde dos cidadãos.
Esta não é uma matéria que deva
ou possa estar entregue a interesses privados. Malfadada a sociedade em que
vivemos que se deixou resvalar para esta insensibilidade institucional, onde
nem sequer se apura que se está a falar de cidadãos que, na sua esmagadora
maioria, pagaram os seus impostos, taxas e taxinhas, e que, assim, ergueram a
sociedade em que nos movemos.
Se, depois, algum afortunado
quiser pagar do seu bolso uma estadia de rei, que o faça e que recorra a
seguros e a lares principescos e tudo por aí fora. Mas, antes, o cidadão comum,
o velho sem amparo, porventura sem família ou com família sem condições, sem
amigos e que apenas convive com a sua solidão deverá ter o direito à dignidade
que advém da sua própria cidadania.
Estão a ver para o que havia de me
dar o confinamento?
Jorge Castro, em 28 de Março de
2020
by OrCa | Mar 12, 2020 | Breve reflexão, Opinião - pensamento crítico, Quotidiano delirante |
O momento é difícil. Ponto. Requer uma atitude cidadã consciente e activa. Ponto, outra vez. Nada a dizer e estejamos atentos e cumpridores ao que nos for sendo imposto tendo em vista a contenção da propagação do flagelo.
Mas, de repente, a malta vai para a praia porque a universidade fechou e cai o Carmo e a Trindade… Os órgãos da dita comunicação exasperam-se e vituperam os prevaricadores; comentadores desvairados insultam os veraneantes extemporâneos; as forças vivas (ou assim-assim) vêm à televisão recordar que aquilo não são férias…
Mas porquê? Então, o Sol não fortalece, até, a nossa imunidade e, como tal, é uma terapia oportuna? E será que, nas diversas escolas, os alunos foram industriados devidamente a enclausurarem-se nos respectivos abrigos? Ou, como habitualmente, tudo vai sendo feito «à Lagardère», tipo a-escola-fechou-até-mais-ver-podem-ir-embora…?
Já numa ida ao meu talho habitual, onde curo do meu abastecimento semanal, em vez de esperar cinco minutos – como é a bitola – tive de aguentar duas horas e meia na fila, para ser atendido, com toda a malta a levar quase todo o jardim zoológico para casa, como se estivéssemos à espera do armagedão já para logo à noite…
Mas, espera aí, aquela senhora que palita os dentes com o dedo mindinho, alterna esta modalidade desportiva com o apoiar-se na vitrina das carnes, uma e outra vez, apontando o naco pretendido ao talhante; aqueloutra, já de idade, vai-se apoiando, alternadamente, mão direita, mão esquerda, o braço todo, as costas na mesma vitrina, enquanto afaga a cabecinha loura da possível netinha, ao colo da filha, também ambas com as mãos pespegadas no vidro delambido. E aquele senhor que tosse e limpa as mãos às calças e, logo mais, ao mesmo vidro da mesma vitrina, apoiando-se enquanto pergunta a um dos talhantes se pode passar à frente, pois tem o restaurante sem carne, ainda que esteja às moscas e já estamos na hora do almoço… E as duas amigas, velhotas já, que estão também numa espécie de desafio, a dar à língua, enquanto esperam, vai para duas horas e à falta de melhor, também se apoiam à sacrossanta vitrina, à míngua de cadeiras onde repousarem o traseiro fatigado…
Quer-se dizer, só nestas escassas duas horas e meia assisti a um potencial imenso de transmissão de vírus, os mais diversos e transviados, à vista de todos e com a maior e mais santificada inconsciência e beatitude e – mais importante – sem que aparecesse uma qualquer câmara para um qualquer canal de tv, a moralizar aquelas massas inconscientes e, quiçá até, prevaricadoras.
E no talho nem está sol. Pelo contrário, o ambiente é muito fresquinho e propício a virulências.
Também fico atónito perante aquela senhora que enche três carrinhos do supermercado com rolos de papel higiénico e com a última vintena de pacotes de guardanapos de papel, ainda existentes na prateleira. Será o receio de alguma pandemia de dejectos?
Ou perante a descontrolada e chorosa funcionária, chamada a trabalhar no seu turno de descanso, porque «isto está pior do que no Natal», debulhada em lágrimas no limiar da exaustão, ainda que soltando risadinhas nervosas perante o despautério aquisitivo de algum cliente do tipo vale-mais-prevenir… apresentando-lhe para pagamento duas dezenas de caixas de comida para cachorro.
E aquele senhor, na feira de Carcavelos, que me disse, ainda hoje, que lhe parecia muito mal o açambarcamento, mas que não era nada mal pensado precavermo-nos para o dia de amanhã, não vá o Diabo tecê-las, e até já tinha um quartinho destinado a armazenar aquelas coisitas que fazem sempre falta… Quando lhe perguntei sobre o papel higiénico, diz-me ele «e porque não?».
Apesar de toda esta gente estar a exercer o seu direito de adquirir o que lhe dê na gana, se calhar, há alguma esquizofrenia nisto tudo… Para não lhe chamar loucura colectiva, claro. Em dois dias, sem qualquer indício de coisa nenhuma, o povo pirou? Este mundo está perigoso!