by OrCa | Dez 26, 2021 | Homenagem |
Tive, hoje, conhecimento de que, no passado dia 20 de Dezembro, faleceu João Baptista Coelho.
Dele direi que conheci um homem bom. Companheiro e mestre, fiel e empenhado, em inúmeras sessões de poesia, esposo amantíssimo e de total entrega, ainda que discreto, amigo fiável como poucos, de fino humor e sempre cavalheiro.
Relembro amiúde o episódio em que, tendo-se esquecido do seu inseparável chapéu dos dias frios, na sala da Biblioteca de São Domingos de Rana, onde desenvolvíamos uma das sessões das Noites com Poemas, ao ausentar-se um pouco mais cedo, para o invariável apoio à sua companheira, regressa, logo mais, constrangido por interromper a sessão, com um impagável «Desculpem, mas esqueci-me da tampa do talento…».
A diferença de idades não impediu nunca as cumplicidades ou a disponibilidade para projectos comuns, onde a sua participação se pautava invariavelmente pelo cultivo do ritmo e da rima, em cada poema, com especial mestria, num certo revivalismo dos nossos clássicos nesta arte, e de onde destacaria o seu à-vontade notável na construção de sonetos.
Isso conduziu-o a alcandorar-se a mais de um milhar de prémios em competições poéticas – caso já de si notável – sendo que mais de 250 foram primeiros lugares.
Há algum tempo tinha desaparecido dos nossos convívios, após a morte da esposa, e, apesar de sempre lembrado no nosso núcleo de «poetas itinerantes e intermitentes», certo é que respeitámos a sua ausência, um pouco como se se tratasse de não perturbar o repouso merecido de um guerreiro.
Legou todo o seu impressionante (e, porventura, único) espólio de troféus à Junta de Freguesia de São Domingos de Rana, que se preparava para organizar uma exposição com os mesmos, em homenagem a este seu munícipe, entretanto já agraciado com a Medalha de Mérito Cultural desta Freguesia, em 2014.
Remeto-vos, com a devida vénia, para o sítio http://www.truca.pt/raposa…/lugar_88_joao_b_coelho.html
onde poderão encontrar mais informação sobre este tão discreto quão prolífico poeta, como tantos outros ignorado das ribaltas literárias de ocasião. E para os amantes de poesia, não deixem de apreciar, cuidadosamente, os poemas ali contidos, onde poderão sentir o pulsar de uma vida… que, tardiamente mas sempre a tempo, soube encontrar na poesia a voz que, de outro modo, o mundo não ouviria.
Se se diz, com um exagero benévolo, que um poeta não morre, quero crer que isso será verdadeiro enquanto perdurar em nós, sobrevivos, a memória do homem e da sua obra. Até sempre, pois, caro Baptista Coelho.
De João Baptista Coelho – Poema Universal
Disseram-me que a Vida era um poema;
que a Terra era um jardim, sempre florido;
que o Homem era a obra mais suprema
dum Deus que, ao universo, deu sentido.
Disseram -me que a paz é nossa Lei;
que, aos homens, a Verdade era o seu pão;
e eu, menino ingénuo, acreditei,
vivendo oitenta anos na ilusão.
Agora, já distante o meu Outono,
e olhando o meu caminho vagabundo,
a noite vem pintar-me no meu sono
o quanto há de Mentira neste mundo.
Falaram-me do Homem, todo amor,
e raro lhe encontrei o verso e a rima;
Falaram-me da Terra, como flor,
e eu lembro aquela, imensa, … a de Hiroshima.
Falaram -me do pão que é a Verdade
nas nunca o vi crescer perante a Vida;
Falaram -me de paz na sociedade
e sempre a vi, na Terra, adormecida.
Falaram-me em sementes e fartura;
em sonhos que, amanhã, serão reais;
e vi-os definhar sem ter frescura,
sem chão onde encontrassem o seu cais …
Falaram-me, também, em Liberdade
que o mundo considera uma riqueza;
que muitos trocariam, de vontade,
por uma sopa quente em sua mesa.
Escutei-lhes as promessas de abastança
e o voto de mais Luz e mais comida;
e vejo, a cada passo, uma criança,
faminta, … mendigando, … a mão estendida.
Ouvi-lhes exaltar o pão-trabalho
a par da segurança no emprego;
mas vi um povo triste, já grisalho,
em busca de salário e de sossego.
E nesta caminhada ao mais-além,
ao ver o erro imenso em que vivi,
abalo e deixo ao mundo o meu desdém
por quanta falsidade guarda, em si.
Mas parto com um grito de protesto,
na busca de outro rumo do destino:
“Num mundo-presunção, tão desonesto,
não voltam a mentir ao eu-menino!”
by OrCa | Dez 24, 2021 | Efemérides, Poemas |
eis o Natal que de súbito acontece
num surto de pandemia
e as malhas que o império tece
em sonhos feitos à pressa e excessos de azevia
um Natal igual a tantos
e sempre sempre diferente
num mundo cheio de encantos
mas onde para outros tantos tem sempre a fome presente
venho lembrar-vos então o José Gomes Ferreira
que depois de ler Descartes mas muito à sua maneira
veio em certa ocasião dizer-nos algo como isto
«penso nos outros – logo existo»
um bom e feliz Natal de lembrar entes queridos
de partir para o novo ano com esperança renovada
é tudo quanto faz falta como prenda aos meus amigos
já agora saúde boa… nem é preciso mais nada!
- Jorge Castro
24 de Dezembro de 2021
by OrCa | Dez 22, 2021 | Crónicas, Humor, Textos facebook |
Diz-me o feicebuque: “Jorge, encontra alguém que goste de ti por aquilo que és. Junta-te às 5.000 pessoas solteiras que estão a marcar encontros em Cascais”.
Isto só pode ser uma partida daquela personagem que nós sabemos que não existe, o tal de Pai Natal.
Mas, agora, fiquei com um problema: será que conheço muita gente que gosta de mim por aquilo que eu não sou? E, com os constrangimentos anunciados por António Costa, como é que vou juntar-me a 5.000 almas solteiras, em Cascais, estando eu casado?
O feicebuque anda com o algoritmo marafado, é o que é…
Acabado de ouvir num centro comercial perto de si:
- O cavalheiro importa-se de não invadir os meus 5 metros quadrados?
- Minha senhora, com o devido respeito, quem invadiu os meus foi a senhora…
- Desculpe, mas eu já estava junto a esta prateleira, só que o artigo está muito alto e desequilibrei-me.
- Pois… não sei. Mas agora como é que vamos resolver isto? Sempre é a saúde pública que está em risco… O melhor é chamar o segurança.
Isto da conversa politicamente correcta tem os seus quês.
Por exemplo, o défice cognitivo, querendo significar algum padecimento mental…
Eu tinha sempre défice cognitivo quando recebia uma negativa numa qualquer prova escolar.
Isto não está fácil…
Acabadinho de ouvir no noticiário da SIC, de um repórter de serviço: “… e se dúvidas houvessem…”.
Não, carais! É HOUVESSE, gente.
Chiça, que se errar é humano, errar demais é desumano!
Até que enfim, tropecei numa notícia positiva.
Andava eu acabrunhado com o desaparecimento dos bidés das actuais casas de banho, sem saber como providenciar, nessa ausência, necessidades higiénicas elementares, e eis que descubro as “smart toilets”, equipadas com uns “multiclean advance square”, que fornecem jacto de água quente, limpeza a seco das partes pudendas…. e sei lá que mais!
Parece que os homens precisam apenas de ter cuidado para não carregar no botãozinho, com legendas em inglês, que se destina à remoção de pensos higiénicos.
A tecnologia é linda…!
by OrCa | Dez 10, 2021 | Poemas |
vou fazer um poema
que seja de ausência
de alguma plangência mais delicodoce
tentar construí-lo de fero granito
de urzes
de estevas
de manhãs geladas
um poema para variar de ser só amor
naquele dó maior de amante ou de amado
um poema com uivos
com brados e agravos
de espantar silêncios
de afiar machados
de rasgar os ventos até os mais bravos
de cravar as unhas em terra lavrada
tal fosse um arado
tal fosse uma espada
um poema que mate
um poema que morra
que também já cansa toda esta modorra
de tudo parado sem que ate ou desate
de fria masmorra
vou fazer um poema
que fale de gente
de gente nascida que parte para a vida
de cara lavada
um poema com lama
que salte da cama e grite na rua
o que lhe vai na alma
e que lhe sobre a calma de sentir no rosto
um raio de sol
um calor de Agosto
um poema pecado que traga no olhar
as vagas que o mar rebenta em arribas
a desfazer fragas com as brutas águas
diversas daquelas paradas
mortiças
a que tu me obrigas
quando me castigas com doces romances
meladas cantigas
e quando o poema por fim for nascido
levá-lo comigo
e mostrar ao mundo
que bem lá no fundo
o poema é então um poema de amor
desse amor maior e tão mais fecundo
que é ao mesmo tempo amante e amado
cruel e traído
temente e ousado
tão agreste quanto doce malmequer
afinal um poema como outro qualquer…
- Jorge Castro
09 de Dezembro de 2021
by OrCa | Dez 7, 2021 | Poemas |
eu não quero
ó menino
que tragas no sapatinho
nem porcos de bicicleta
nem as vacas voadoras
cabritas das correrias
ou quilovátios de ricos
nem águas dos abastados
arreda-me os passadiços
estrafega os «halloweens»
pistas de gelo nem vê-los
ou aquaparques mui «ins»
de que já estou pelos cabelos
nem me tragas mais estufas
ou intensivo plantio
que nos chegam de pantufas
deixando o campo doentio
vem se queres de bicicleta
mas de andar em ciclovia
ou até de trotineta
sem atropelar asceta
coitado porque é velhinho
vem conforme a tua veneta
mas trilhando esse caminho
onde um bosque tem arbustos
e a floresta arvoredo
numa campina a papoila
é um grito no dourado
e um rosto de moçoila
fica melhor se corado
pelo sol e a brisa fresca
e num regato ir à pesca
do tempo desperdiçado
traz-me a hora vespertina
quiçá ao som de um nocturno
num pôr do sol ou ocaso
a que assisto por acaso
no verdor de uma colina
que já foi duna de areia
onde enraíza o passado
e no fulgor de uma ideia
brota ardente a flor presente
e o futuro ansiado
logo ali à minha frente
traz-me o que eu sou e o que é meu
não me tragas de ninguém
o que seja muito seu
como o colo da sua mãe
ou o cesto de um vintém
onde guarda a sua vida
e aguarda o que lá vem…
… que posso ser eu até
que podes ser tu também
já que a vida tem mais graça
quando se abraça outro alguém.
- Jorge Castro
07 de Dezembro de 2021