Nostálgico. É isso… Relembrando um daqueles momentos em que estive um pouco em companhia de mim mesmo.
MEMÓRIA DESCRITIVA
a noite descera serena e silente sobre o empedrado húmido da chuva aqui e ali uma azeda gritava numa teimosia a cor que brandia numa comissura breve do lajedo crescia em recanto a rubra papoila tão desvanecida pela noite descida talvez a aguardar a nova alvorada
era primavera em cada ruela onde a luz da lanterna tanto esmorecia e o casario fundia em fraguedos os seus alicerces contra a intrépida agrura de tanto abandono
não se via vivalma nem se pressentia só estes meus passos desassossegavam a quietude pasma do lugar perdido se houvera risos e ecos de passos passados do labor agreste do gado de volta ao sítio de abrigo do regato ao fundo bordejado a freixos marginado a plátanos que o vento tangia restou só a fala da água e da brisa nesta noite fresca sem ninguém à vista
há o coaxar teimoso das rãs há o pio surdo e nocturno de um mocho um grilo a cigarra a brisa nas ervas e algum bater breve de porta entreaberta saudosa de mãos a dar-lhe um destino
e naquele lameiro há anos sem uso avistado ao longe numa lua cheia as pedras dos muros que ainda o ladeiam estão de sentinela em missão cumprida.
Eu, por acaso, cada vez percebo menos disto, o que me deixa à vontade para seguir a corrente e dizer uns disparates a armar ao analista político. Vejamos: pelo aparente conteúdo do orçamento para 2022, o que é que impede que o PSD faça um acordo geringonçante com o PS, alcançando-se, assim, a almejada e consensual estabilidade do regime? Pois, mas António Costa, numa lua cheia há uns largos mesitos, informou o povo de que acordos com o PSD, “jamé!”, que viria logo o governo ao chão e outras coisas assim catastróficas… Jogada de mestre, esta, que deixou o BE e o PCP reféns desta salada. Se aprovam orçamentos perdem eleitores; se tiram o apoio ao governo perdem eleitores… Tudo a bem de um governo de “esquerda”, claro. E num caso ou noutro ainda têm a acusação de chantagistas em cima. Nos entretantos, Costa ri-se, Rui desatina, a gasolina sobe a cumes incomensuráveis, a electricidade é o que se vê, os quadros da fiel depositária andam por aí, as “entidades reguladoras”, que nada regulam, pululam quais cogumelos, as negociatas miseráveis que se vêm fazendo de há uns bons 40 anos para cá não conhecem culpados nem remissão e Portugal vive com dois milhões de pobres, calma e tranquilamente… Claro que esta descrição pode pecar por simplista e caricatural, mas há algum erro no raciocínio? Façam lá uma pausa na telenovela e juntem os trapinhos, só para ver se podemos ficar um bocadinho mais felizes todos.
22 de Outubro
Quando ouço falar em “trabalho digno” sinto sempre um arrepio incómodo… É que me lembro de que a minha companheira foi professora do ensino oficial durante 40 anos, mas nos primeiros 17 andou em bolandas com o estatuto oficial de professora “definitiva-provisória”. Lembro, também, o esvaziamento avassalador de quadros na (grande) empresa onde trabalhei, substituídos por trabalhadores no malfadado “outsourcing”, alguns dos quais mantêm ainda esse estatuto há mais de vinte anos. Lembro a passividade cúmplice dos sindicatos para quem – e inúmeras vezes o ouvi – a desregulamentação do mercado do trabalho era uma “inevitabilidade”… quando deviam lutar por se tratar, isso sim, de uma ilegalidade. Lembro o atropelo, também ilegal, dos contratos colectivos de trabalho, obrigando as novas admissões à aceitação de contratos individuais com o pagamento de salários inferiores a metade do que auferiam os abrangidos pelos contratos colectivos. Lembro-me dessas realidades vividas e muitas mais do mesmo quilate… e quando ouço, agora, falar no trabalho digno corro a munir-me de uma toalha de banho para não me encharcar de lágrimas de crocodilo.
22 de Outubro
Esta ideia nasce de uma conversa com um familiar próximo que me é muito caro e assim aqui ficam os créditos que lhe são devidos. Mas nasce, também, porque me deu na cabeça fazer um teste de ADN. E escusam de estar para aí com palpitações, que eu não vou revelar minudências nenhumas acerca das minhas origens, que isso é muito coisa minha. Mas informo, muito humildemente, todos os meus amigos que, se alguém se quiser referir à minha pessoa, com alguma exactidão quanto à ascendência genética, o mais correcto é chamarem-me mestiço. Está combinado? Obrigado. (Curiosamente, depois desta alteração, hoje acordei exactamente igual a ontem…)
Iniciado «oficialmente» em 01 de Janeiro de 2004, este espaço salta, a pés juntos, para o seu décimo sexto ano de existência. Aos que o frequentam ou frequentaram, um forte abraço. Para os que nem sonham com a sua existência, um forte abraço, também.
Cada ano, cada átimo temporal, é sempre muito o que dele fazemos. Façamos, pois, todos um excelente 2020!
E deixo-vos com um apontamento, a propósito, do qual recomendo visualização, criado pelas SaganSeries, e que se refere ao tanto que convosco quero partilhar neste momento:
(Ai, a pena que eu tenho de não ter tempo para me dedicar com mais e maior afinco a este meu cantinho, tão entregue ao abandono…)
Enfim, aí estão as eleições para a Assembleia da República. Votarei? Sempre! Acompanho a campanha? Nunca (com especial incidência no que se refere às diversas televisões)!
Mas com a arrogância que caracteriza aqueles que que presumem ter algumas convicções na vida, sempre vos digo que todos devemos votar. Nenhum cidadão é neutro. Isso é coisa que não existe.
Respiramos, comemos, bebemos… e tudo o mais que vos ocorra nós fazemos. E, mesmo quando presumimos o contrário, certo é que nunca o fazemos sozinhos. A montante ou a jusante dos nossos actos estão sempre os nossos semelhantes que, quando não partilham a execução dos nossos actos, colhem sempre o efeito dos mesmos.
Nenhum homem é uma ilha, não é verdade? Então, vote lá, se faz o favor. Não custa muito e vai ver que se sentirá, logo a seguir, um exemplar de homo sapiens muito mais livre.