Nostálgico. É isso… Relembrando um daqueles momentos em que estive um pouco em companhia de mim mesmo.

MEMÓRIA DESCRITIVA

a noite descera serena e silente
sobre o empedrado húmido da chuva
aqui e ali uma azeda gritava
numa teimosia a cor que brandia
numa comissura breve do lajedo
crescia em recanto a rubra papoila
tão desvanecida pela noite descida
talvez a aguardar a nova alvorada

era primavera em cada ruela
onde a luz da lanterna tanto esmorecia
e o casario fundia em fraguedos os seus alicerces
contra a intrépida agrura de tanto abandono

não se via vivalma nem se pressentia
só estes meus passos desassossegavam
a quietude pasma do lugar perdido
se houvera risos e ecos de passos passados
do labor agreste
do gado de volta ao sítio de abrigo
do regato ao fundo bordejado a freixos
marginado a plátanos que o vento tangia
restou só a fala da água e da brisa
nesta noite fresca sem ninguém à vista

há o coaxar teimoso das rãs
há o pio surdo e nocturno de um mocho
um grilo
a cigarra
a brisa nas ervas
e algum bater breve de porta entreaberta
saudosa de mãos a dar-lhe um destino

e naquele lameiro há anos sem uso
avistado ao longe numa lua cheia
as pedras dos muros que ainda o ladeiam
estão de sentinela em missão cumprida.

  • Jorge Castro
    23 de Maio de 2023