exercício em defesa da escultura «Amores de Camilo» de Francisco Simões e contra os moralistas de outras eras

Em 2012, a Câmara do Porto aceitou a doação da estátua “Amores de Camilo”. Essa doação foi aprovada pelo Executivo Municipal, motivo que impede que seja retirada (felizmente…).

«que terão eles visto na estátua que eu não vi nem viste tu?
perturba-os a senhora nua ou o Camilo não estar nu?»
– isto vai dizendo o Eça à Verdade que ele enlaça…

ah houvera quem vos dera no vosso alvar frontispício
mesmo em retórico exercício
senhores donos do pudor
com um bronze ou um granito que vos esculpisse algum grito
sem vos causar mal maior
mas recentrando a esfera da cabeça… se a tivéreis

não sabeis vós que a nudez afinal foi quem vos fez?
ou será que a vossa afronta vem de algo de pouca monta
que sem força não ergueis
– falo eu do argumentário
que de frustre e passadista
mais soa a reaccionário com presunção moralista

«olhai bem para o que eu digo
não cuideis de quanto eu faço»
diz o abade ao abrigo de seus filhos no regaço…
não sejais tais sacripantas
sacristas ou até eunucos
tudo em redor conspurcando com seus aleivosos mucos

não frequentais vós as praias
oh cruzados da moral?
não vos perturbam as belas com tanto fio dental?
que mostra mais do que esconde
quanto na mulher avonde
e é de si primordial?

deixai-vos lá dessas tretas
ou armados em ascetas
proibireis o areal?

– até o mar que as banha
havia de vos querer mal!

  • Jorge Castro
    17 de Setembro de 2023

o azar do poema

ao costurar dois conceitos
cuidei ter feito um poema
eram meros preconceitos
preceitos para uma cena
de teatro de fantoches
ou até de marionetas
onde por mais que deboches
assim nascem os poetas

dois conceitos saturados
do sal que a vida nos traz
em contraluz ofuscados
com sol batendo por trás
como quem tange a rebate
um sino que não está lá
por electrónica que farte
do tanto que ela nos dá

um poema incontinente
de mil pés ambulacrário
a correr de trás para a frente
e sempre em modo contrário
quem o ouviu poema o disse
quem o sentiu mais choroso
chamou poema-chatice
ao tal poema manhoso.

  • Jorge Castro
    24 de Julho de 2023

ainda um poema de amor?

quando olho para ti
esses teus olhos
lembram sempre aquele mar cheio de estrelas
onde cedo aprendi a navegar
nem era meus os caminhos
eram delas
reflectidas nessa ondulação do mar

sempre em vão me esforcei por entendê-las
por trazê-las junto a mim
ao meu lugar
mas talvez por serem tão somente estrelas
tão prementes
tão belas
tão distantes
só as tive na carícia de um olhar.

  • Jorge Castro
    09 de Maio de 2023

viva o 25 de Abril!

A VIDA SAIU À RUA NUM DIA ASSIM

porque o tempo é sempre feito de mudança
as quimeras e utopias são reais
muda o tempo muito mais que a vista alcança
mas o sonho esse então nunca é demais

há-de ser sempre Abril este meu hino
de lutar contra o pavor de ter amarras
há-de ser de Abril decerto esse destino
de fazer de negras noites manhãs claras

esse tempo
tempo este
o que virá
onde tu e eu e nós gritamos sim
contra muros a erguer penas e espadas
e ao sair a vida à rua em dia assim
vai trazer-nos boas novas e alvoradas

esse tempo
tempo este
o que virá
feito urgente em cores da fraternidade
a trazer ao peito o grito conhecido
sempre urgente a relembrar toda a cidade
que o povo unido nunca mais será vencido

esse tempo
tempo este
o que virá
cravo-Abril sendo flor e temporã
de acender este querer ser que em peito arde
por mais que tarde já lá vem o amanhã
porque Maio vai florir e nunca é tarde.

  • Jorge Castro
    Abril de 2023

o beijo

Dizem-me que houve, há dias, o dia do beijo. Ora, para o bem de nós, é melhor que nos beijemos sempre que apetecer.

E, por falar nisso, preparando uma sessão em que estarei, hoje, envolvido, tropecei com este meu poema, que vos deixo, e que já conta com uns anitos de ver a luz do dia. Espero que ele vos estimule o dia…

beijo

vês?
chegámos de novo a Abril
e os teus olhos abrem-me sempre novas madrugadas
os teus seios de oferendas
mil ensejos
mil moradas

o teu ventre abre-se em flor
e cruzas o tempo
na promessa de um prazer que é quase dor
ou quase sede
de que abusas

e a tua pele quando me acolhe
de veludo a maciez
mas quase ardência
nessa urgência em que eu pare
e p’ra ti olhe
e ao de leve te pressinta
uma premência
de ti um fremir quase ventura
que estremece
porque tanto me apetece
dos teus lábios a suave comissura

a minha língua toca-a levemente
e os teus lábios recebem-me
e desenham-se em sorriso
e afogam-me
e bebem-me
sem aviso
e o tempo voa assim
sem dor
nem hora
porque é feito de Abril
o que em nós mora.

  • Jorge Castro
    22 de Abril de 2010

desenhando no parque

Porque hoje é sábado, como diria o velho Vinícius, fui passear até ao parque para tentar corresponder ao desafio que o Carlos Peres Feio fez para o próximo dia 15 de Abril.

DESENHANDO NO PARQUE

– em contemplação bucólica (também faz falta…) num jardim que me acolheu

vou ao parque e faço um traço
no espaço que deslaço
onde a vida se entretém
risco a risco lá me arrisco
enquanto o sol permanece
enquanto a noite não vem

sinto o verde que apetece
e as flores que mal despontam
sob os pés de mil passantes
e na sombra do arvoredo
estão dois jovens amantes
que despertam nostalgia
num beijo que é dado a medo
à pressa e sem demasia

no espelho da lagoa
as aves criam enredos
perturbando a quietude
que os peixes cruzam à toa
e os meus traços são vontades
que afloram o papel
recriando realidades
como ave quando voa

nesta paleta de cores
não me cabem os odores
nem os gritos de criança
é o que vejo e pressinto
neste parque onde me sento
p’ra além do que a vista alcança

nem há guerra nem há paz
só tanto o que à vida vem
quanto à vida satisfaz

lá estou eu sem lá estar bem
pois por mim nem sequer dou
em tanto que o parque tem.

  • Jorge Castro
    08 de Abril de 2023