tu

TU

  • num dia em que dediquei uma manhã inteira a ouvir algumas das canções da minha vida, uma homenagem a todos quantos fazem da canção uma flor, uma ilusão e um combate

tu
meu amigo de sempre e meu irmão
que empunhas a canção
que me transporta
com a flor
a ilusão
e o combate
mas que vibra sempre em mim
pelo tempo fora
dás-me um mundo melhor para viver
e o sonho
de sonhar bem acordado
tu
serás para sempre a luz na treva
a esperança em cada novo amanhecer
mesmo no tempo de morte
e de desnorte
a vibrante evocação de acontecer
a emoção
que vem do fundo de nós
o arrepio
de sempre valer a pena
ser
estar
permanecer
na firmeza indefectível
do viver
a ti
agradeço então
essa canção que me trouxeste
e o quanto do que sou
a ti o devo
a ti
e à canção que me transporta
com a flor
a ilusão
e o combate
na alegria indefectível
de viver.

  • Jorge Castro
    21 de Agosto de 2021

Viva José Afonso!

Em 02 de Agosto de 1929 nasceu José Afonso.

Dele e do seu imenso legado musical e político eu e tantos já dissemos muito e outro tanto haverá a dizer, assim nos sobre engenho e arte.

Deixo aqui uma dessas simples homenagens de minha autoria que lhe dediquei, em projecto de Ernesto Matos – «25 Poemas para o Zeca» – e que viva o José Afonso!

A JOSÉ AFONSO – POR TER BARCOS POR TER REMOS

não havia qualquer som na neblina
que pairava densamente na cidade
quando amar era névoa clandestina
e balada só rimava com saudade

mas ergueu-se uma voz
doutras seguida
uma voz de cantar
a voz erguida
deste chão só de sombras e degredo
este chão e esta voz que desgarrada
soube ser
e crescer
e ser amada
essa voz que cresceu só contra o medo
essa voz que acordou a madrugada.

  • Jorge Castro
    06 de Março de 2012

exortação

não cales o que sabes
meu amigo
porque morrerá contigo
o quanto sabes saber
e o que sabes nem é teu
pois houve tantos que o deram
outros tantos o emprestaram
só para te ver crescer
lembra também o suor
e o sangue derramado
o labor de cada dia
em cada dia passado

há a imensa maravilha
de termos certa a certeza
de homem algum ser uma ilha
mas promontório natural
e ser maior seu tamanho
quanto maior o empenho
em ter o irmão seu igual

não cales o que sabes
meu amigo
que a prisão de um pensamento
rouba-te à vida o alento
e ficas só
sem abrigo

dá-nos de ti a pintura
o poema
a partitura do que melhor te aprouver
um chiste
porventura a escultura
o romance em cantochão
de amor ou de amargura
mas de sentir um coração
a bater
sempre a bater

temos pouco tempo
amigo
de viver
só por viver.

  • Jorge Castro
    01 de Agosto de 2021

um momento perfeito

Foram poucos, numa vida inteira. Mas cada um deixou marca indelével. De súbito, nada me faltava ou tudo o que tinha me bastava e havia uma sensação perto do irreal a que, se calhar, chamamos felicidade.

Hoje, dedico-lhe um poema.

UM MOMENTO PERFEITO

por vezes um sobressalto
um frémito sem cor nem tom
um sentir falar mais alto
uma razão sem razão
uma inércia em que vogamos
só porque sim e mais não
e vamos só porque andamos
em frente de corpo inteiro
e nem vemos quanto olhamos
e nem pensamos primeiro

um sobressalto por vezes
tantas vezes perseguido
como um salto entre revezes
para além do conhecido
e nada então nos faz falta
nada mais disto ou de nada
como se em qualquer ribalta
toda a vida fosse estrada
e uma certeza ressalta
fazer nossa caminhada

esse é o momento perfeito
onde tudo está mais claro
cada um com o seu jeito
cada um com seu amparo
mas um mar de quietude
nos invade em harmonia
desejos de solitude
com laivos de maresia
tal de um poema a virtude
de nos fazer companhia.

  • Jorge Castro
    25 de Julho de 2021

liberdade (sobre o tema de «A Lista de Schindler»)

Revisitando «A Lista de Schindler»

A oportunidade das coisas que fazemos é, quase sempre, muito própria e, geralmente, intransmissível. Este quase-poema foi escrito sob a influência do tema do filme, da autoria de John Williams, e das imagens sempre aterradoras de uma realidade que nos está próxima e, lamentavelmente, sempre muito presente: o menosprezo pela vida. Aqui vo-lo deixo:

LIBERDADE (SOBRE O TEMA A LISTA DE SCHINDLER)

quanto tempo há-de passar
oh quanto tempo
quanto rios hão-de secar
até cessarem de se inundar com as lágrimas
da miséria humana?
porque percorremos os bosques
do contentamento
os céus puros
e até as melancolias
dos amantes enternecidos
se mergulhamos depois as mãos no sangue
dos nossos irmãos
por uma fé iníqua
ou pela mera angústia de viver
pelo medo sem sentido
de ser?

a liberdade
flui em cada vida que brota
no eterno retorno da mesma vida
essa liberdade
entranhada no ser que somos
razão e matriz de vida e razão de ser
uno e um no meio dos outros
mas partilhado por tudo quanto de nós
se faz com o fluir do tempo
desse tempo por onde todos vamos perpassando
na ininterrupta caminhada
até chegar a hora
de passarmos o nosso testemunho e legado
ao mundo que nos acolheu
e a quem de tudo somos devedores

pelo meio do troar hediondo da guerra
e os gritos desgarrados do horror
a morte do nosso semelhante às nossas mãos
é a derradeira manifestação de aviltamento
e cobardia
é a negação maior da nossa própria existência
da nossa razão de viver
da nossa própria liberdade.

  • Jorge Castro
    20 de Junho de 2021

Litania ao Dia de Portugal 2021

venha lá a sardinha
as papas e os bolos
de enganar os tolos
a chuva miudinha
uva sem grainha
venha lá o medo
venham os bretões
nos seus aviões
dar cor ao enredo
em cor de lagosta
como a gente gosta
mas sem sinapismo
venham lá depressa
espantar o Eça
criar mais turismo
venha lá a Covid
que ninguém duvide
que está p’ra ficar
assim como estamos
entre desenganos
a olhar para o mar
venha a valentia
de num qualquer dia
ao mar nos fazermos
mas com a alegria
de um submarino
que só anda a remos
venha lá o vinho
o amigo e o vizinho
e do mal venha o menos
venham caracóis
com os futebóis
tão bons de rimar
tal como a cerveja
e a tanta inveja
que temos p’ra dar
ah meu Portugal
plastificado
como o via O’Neill
como o canta o fado
não há outro igual

ou melhor dizendo
não há outro Abril…?

  • Jorge Castro
    10 de Junho de 2021