a José Afonso

Uma homenagem:

A JOSÉ AFONSO – POR TER BARCOS POR TER REMOS

não havia qualquer som na neblina
que pairava densamente na cidade
quando amar era névoa clandestina
e balada só rimava com saudade

mas ergueu-se uma voz
doutras seguida
uma voz de cantar
a voz erguida
deste chão só de sombras e degredo
este chão e esta voz que desgarrada
soube ser
e crescer
e ser amada
essa voz que cresceu só contra o medo
essa voz que acordou a madrugada.

  • Jorge Castro
    (Poema integrado no projecto 25 Poemas para o Zeca, em 25 de Abril de 2012, com Ernesto Matos e a Câmara Municipal de Lisboa)

a João Baptista Coelho

O amigo João Baptista Coelho, poeta, que nos deixou há alguns dias, era um eterno enamorado da sua companheira de vida e esposa.
Cascais, na pessoa de uma querida amiga, pediu-me que eu emprestasse a minha voz a um poema daquele amigo poeta, «Poema para a Minha Mulher», a que correspondi com muito gosto, até como mais uma homenagem ao João Baptista Coelho.
E, afinal, até consta que hoje se celebra o dia dos namorados…

ainda e sempre o Natal,
bem-me-quer, mal-me-quer…

eis o Natal que de súbito acontece
num surto de pandemia
e as malhas que o império tece
em sonhos feitos à pressa e excessos de azevia

um Natal igual a tantos
e sempre sempre diferente
num mundo cheio de encantos
mas onde para outros tantos tem sempre a fome presente

venho lembrar-vos então o José Gomes Ferreira
que depois de ler Descartes mas muito à sua maneira
veio em certa ocasião dizer-nos algo como isto
«penso nos outros – logo existo»

um bom e feliz Natal de lembrar entes queridos
de partir para o novo ano com esperança renovada
é tudo quanto faz falta como prenda aos meus amigos
já agora saúde boa… nem é preciso mais nada!

  • Jorge Castro
    24 de Dezembro de 2021

vou fazer um poema

vou fazer um poema
que seja de ausência
de alguma plangência mais delicodoce
tentar construí-lo de fero granito
de urzes
de estevas
de manhãs geladas
um poema para variar de ser só amor
naquele dó maior de amante ou de amado

um poema com uivos
com brados e agravos
de espantar silêncios
de afiar machados
de rasgar os ventos até os mais bravos
de cravar as unhas em terra lavrada
tal fosse um arado
tal fosse uma espada
um poema que mate
um poema que morra
que também já cansa toda esta modorra
de tudo parado sem que ate ou desate
de fria masmorra

vou fazer um poema
que fale de gente
de gente nascida que parte para a vida
de cara lavada
um poema com lama
que salte da cama e grite na rua
o que lhe vai na alma
e que lhe sobre a calma de sentir no rosto
um raio de sol
um calor de Agosto

um poema pecado que traga no olhar
as vagas que o mar rebenta em arribas
a desfazer fragas com as brutas águas
diversas daquelas paradas
mortiças
a que tu me obrigas
quando me castigas com doces romances
meladas cantigas

e quando o poema por fim for nascido
levá-lo comigo
e mostrar ao mundo
que bem lá no fundo
o poema é então um poema de amor
desse amor maior e tão mais fecundo
que é ao mesmo tempo amante e amado
cruel e traído
temente e ousado
tão agreste quanto doce malmequer

afinal um poema como outro qualquer…

  • Jorge Castro
    09 de Dezembro de 2021

um pedido de Natal português

eu não quero
ó menino
que tragas no sapatinho
nem porcos de bicicleta
nem as vacas voadoras
cabritas das correrias
ou quilovátios de ricos
nem águas dos abastados
arreda-me os passadiços
estrafega os «halloweens»
pistas de gelo nem vê-los
ou aquaparques mui «ins»
de que já estou pelos cabelos
nem me tragas mais estufas
ou intensivo plantio
que nos chegam de pantufas
deixando o campo doentio

vem se queres de bicicleta
mas de andar em ciclovia
ou até de trotineta
sem atropelar asceta
coitado porque é velhinho
vem conforme a tua veneta
mas trilhando esse caminho
onde um bosque tem arbustos
e a floresta arvoredo
numa campina a papoila
é um grito no dourado
e um rosto de moçoila
fica melhor se corado
pelo sol e a brisa fresca
e num regato ir à pesca
do tempo desperdiçado

traz-me a hora vespertina
quiçá ao som de um nocturno
num pôr do sol ou ocaso
a que assisto por acaso
no verdor de uma colina
que já foi duna de areia
onde enraíza o passado
e no fulgor de uma ideia
brota ardente a flor presente
e o futuro ansiado
logo ali à minha frente

traz-me o que eu sou e o que é meu
não me tragas de ninguém
o que seja muito seu
como o colo da sua mãe
ou o cesto de um vintém
onde guarda a sua vida
e aguarda o que lá vem…

… que posso ser eu até
que podes ser tu também
já que a vida tem mais graça
quando se abraça outro alguém.

  • Jorge Castro
    07 de Dezembro de 2021

aquele homem, sim, era um poeta

aquele homem
sim
era um poeta

não se lhe sabe obra escrita
palavra dita ou ditada
mas decerto era um poeta
sofria espantos de luz num ocaso evanescente
e de tormentos de cor ao voo de mariposas
tinha frémitos de amor em primaveril campina
e o céu de tanto azul inundava-o de ternura
tal como um nascer do sol lhe dava melancolia
via universos nas nuvens que ninguém apercebia
e trajou luto cerrado ao pisar uma papoila

por fim foi crucificado
num pelourinho de injúrias
e à sua face serena lançaram pedras de escárnio
insultos só de arrogância

mas por entre a turbamulta que o ódio enegrecia
ele divisou um olhar de criança
que sorria
e morreu serenamente
como raro acontecia mesmo nos dias mais calmos
de tormentos pressentidos

aquele homem
sim
era um poeta
algo que ninguém sabia.

  • Jorge Castro
    29 de Novembro de 2021