não havia qualquer som na neblina que pairava densamente na cidade quando amar era névoa clandestina e balada só rimava com saudade
mas ergueu-se uma voz doutras seguida uma voz de cantar a voz erguida deste chão só de sombras e degredo este chão e esta voz que desgarrada soube ser e crescer e ser amada essa voz que cresceu só contra o medo essa voz que acordou a madrugada.
Jorge Castro (Poema integrado no projecto 25 Poemas para o Zeca, em 25 de Abril de 2012, com Ernesto Matos e a Câmara Municipal de Lisboa)
O amigo João Baptista Coelho, poeta, que nos deixou há alguns dias, era um eterno enamorado da sua companheira de vida e esposa. Cascais, na pessoa de uma querida amiga, pediu-me que eu emprestasse a minha voz a um poema daquele amigo poeta, «Poema para a Minha Mulher», a que correspondi com muito gosto, até como mais uma homenagem ao João Baptista Coelho. E, afinal, até consta que hoje se celebra o dia dos namorados…
eis o Natal que de súbito acontece num surto de pandemia e as malhas que o império tece em sonhos feitos à pressa e excessos de azevia
um Natal igual a tantos e sempre sempre diferente num mundo cheio de encantos mas onde para outros tantos tem sempre a fome presente
venho lembrar-vos então o José Gomes Ferreira que depois de ler Descartes mas muito à sua maneira veio em certa ocasião dizer-nos algo como isto «penso nos outros – logo existo»
um bom e feliz Natal de lembrar entes queridos de partir para o novo ano com esperança renovada é tudo quanto faz falta como prenda aos meus amigos já agora saúde boa… nem é preciso mais nada!
vou fazer um poema que seja de ausência de alguma plangência mais delicodoce tentar construí-lo de fero granito de urzes de estevas de manhãs geladas um poema para variar de ser só amor naquele dó maior de amante ou de amado
um poema com uivos com brados e agravos de espantar silêncios de afiar machados de rasgar os ventos até os mais bravos de cravar as unhas em terra lavrada tal fosse um arado tal fosse uma espada um poema que mate um poema que morra que também já cansa toda esta modorra de tudo parado sem que ate ou desate de fria masmorra
vou fazer um poema que fale de gente de gente nascida que parte para a vida de cara lavada um poema com lama que salte da cama e grite na rua o que lhe vai na alma e que lhe sobre a calma de sentir no rosto um raio de sol um calor de Agosto
um poema pecado que traga no olhar as vagas que o mar rebenta em arribas a desfazer fragas com as brutas águas diversas daquelas paradas mortiças a que tu me obrigas quando me castigas com doces romances meladas cantigas
e quando o poema por fim for nascido levá-lo comigo e mostrar ao mundo que bem lá no fundo o poema é então um poema de amor desse amor maior e tão mais fecundo que é ao mesmo tempo amante e amado cruel e traído temente e ousado tão agreste quanto doce malmequer
eu não quero ó menino que tragas no sapatinho nem porcos de bicicleta nem as vacas voadoras cabritas das correrias ou quilovátios de ricos nem águas dos abastados arreda-me os passadiços estrafega os «halloweens» pistas de gelo nem vê-los ou aquaparques mui «ins» de que já estou pelos cabelos nem me tragas mais estufas ou intensivo plantio que nos chegam de pantufas deixando o campo doentio
vem se queres de bicicleta mas de andar em ciclovia ou até de trotineta sem atropelar asceta coitado porque é velhinho vem conforme a tua veneta mas trilhando esse caminho onde um bosque tem arbustos e a floresta arvoredo numa campina a papoila é um grito no dourado e um rosto de moçoila fica melhor se corado pelo sol e a brisa fresca e num regato ir à pesca do tempo desperdiçado
traz-me a hora vespertina quiçá ao som de um nocturno num pôr do sol ou ocaso a que assisto por acaso no verdor de uma colina que já foi duna de areia onde enraíza o passado e no fulgor de uma ideia brota ardente a flor presente e o futuro ansiado logo ali à minha frente
traz-me o que eu sou e o que é meu não me tragas de ninguém o que seja muito seu como o colo da sua mãe ou o cesto de um vintém onde guarda a sua vida e aguarda o que lá vem…
… que posso ser eu até que podes ser tu também já que a vida tem mais graça quando se abraça outro alguém.
não se lhe sabe obra escrita palavra dita ou ditada mas decerto era um poeta sofria espantos de luz num ocaso evanescente e de tormentos de cor ao voo de mariposas tinha frémitos de amor em primaveril campina e o céu de tanto azul inundava-o de ternura tal como um nascer do sol lhe dava melancolia via universos nas nuvens que ninguém apercebia e trajou luto cerrado ao pisar uma papoila
por fim foi crucificado num pelourinho de injúrias e à sua face serena lançaram pedras de escárnio insultos só de arrogância
mas por entre a turbamulta que o ódio enegrecia ele divisou um olhar de criança que sorria e morreu serenamente como raro acontecia mesmo nos dias mais calmos de tormentos pressentidos
aquele homem sim era um poeta algo que ninguém sabia.