Otelo Saraiva de Carvalho
– um Homem do nosso Abril

Otelo Saraiva de Carvalho deixou o nosso convívio, hoje, com a idade de 84 anos, e a democracia que somos e que temos ficou empobrecida.

Figura polémica, controversa, contraditória, até, mas sempre apaixonada, de palavra fácil e coração ao pé da boca, era o que eu rotulo como um ser humano bom.

Talvez haja melhores mas, seguramente, há muitos piores. A ele, à sua entrega e disponibilidade em prol do ser humano, a par da de muitos camaradas de armas, devemos o êxito do derrube da ditadura.

Quem se “entretiver” com exercícios desviantes com invocações a “campos pequenos” e outros devaneios, peço o favor de que vá bater a outra porta. Tive o prazer de o ouvir em diversas situações e, até, de falar com ele. E dessa experiência vos digo que me sinto, hoje, deveras penalizado pelo seu desaparecimento.

Preservemos dele a boa memória.

lembrar os amigos nunca é demais

Associá-los à Cultura, por maioria de razão. Hoje, por circunstâncias fortuitas, tropecei com esta feliz e oportuna entrada de Ana Sofia Paiva, que funde António Gedeão, Mário Piçarra, Águeda de Sena e Olga Roriz.

Com os meus agradecimentos à autora e para quem não conheça a versão musicada que Mário Piçarra criou para o poema de António Gedeão, a Calçada da Carriche – nas palavras de Tito Lívio, a melhor versão musicada deste excelente poema -, aqui fica, em fundo… e para ouvir até ao fim:

ao Carlos do Carmo

ele é o homem na cidade
o homem-voz de um povo inteiro
que pela sua voz era diferente

cantor de um fado em dó maior
por si sentido
por esse povo em sua voz
ser renascido
a reinventar o amor
nas ruas frias da cidade enferma
enferma de liberdade
até à redenção
enferma de saudade
até ao coração que a razão cultiva
o outro fado
do outro lado de toda a vida
que há em Lisboa num beco esconso
mas corre mundo
e corre a vida até ao osso
ou à medula do que mais vale

a nossa voz que ele redimiu
e reforçou
onde a palavra se engrandece
de pedra e rosas
de andorinhas
de uma loucura ao desencanto
e as tabuinhas de uma janela
feita do espanto que acontece
depois do pranto
depois da prece
quando se ergue a voz do povo
onde Lisboa sempre amanhece…

  • Jorge Castro
    01 de Janeiro de 2021

Carlos Alberto Ferreira

– não deixo de me comover com a imagem deste herói solitário, descendo a Avenida da Liberdade, em 25 de Abril de 2020…

Carlos Alberto Ferreira
assim mesmo
sem mais ser
desce a Avenida liberto
e a Liberdade é seu nome
é o que tem de mais certo
que assim se fez ao nascer

desce a passo compassado
leva com ele o pendão
que dá nome a uma nação
e sobre os ombros transporta

leva o pendão em penhor
de um destino maior
futuro que mais importa

Carlos Alberto Ferreira
desce trajado a rigor
a Avenida
e é senhor
da verde e rubra bandeira
que nas suas mãos é a flor
de em Abril florescer
para uma nação inteira.

  • Jorge Castro – 28 de Abril de 2020

(fotografia da autoria de José Sena Goulão, publicada pela Associação 25 de Abril)

alguém me recordou José Gomes Ferreira, o poeta

Porventura pela evocação do sacrifício de (outro) cordeiro pascal, tocou-me a mensagem da minha amiga Júlia Coutinho, que me recordou, hoje, um poema de José Gomes Ferreira, que é sempre oportuno. Aqui fica a mensagem da minha amiga e o poema, para que a memória nos auxilie a criar um mundo melhor.

E hoje, que estou a reler José Gomes Ferreira, envio um poema seu de Set 1979 quando a GNR matou dois trabalhadores no Alentejo.

O poeta chorou… e eu, não sendo poeta, fiquei tão chocada que não consegui reter as lágrimas durante dias. No Portugal de Abril a guarda matava um homem de 40 e um jovem de 17 por quererem trabalhar as terras.

Abraço amigo e… Páscoa Feliz nesta fase de reinvenção dos dias. 

julia

Aqui
Nesta planície de sol suado
Dois homens desafiaram a morte, cara a cara,
em defesa do seu gado
de cornos e tetas.

Aqui onde
agora vejo crescer uma seara
de espigas pretas

Quando os dois camponeses desceram às covas,
Ante os punhos cerrados de todos nós,
Chorei!

Sim, chorei,
Sentindo nos olhos a voz
do que há de mais profundo
nas raízes dos homens e das flores
a correrem-me em lágrimas na face.

Chorei pelos mortos e pelos matadores
– almas de frio fundo.

Digam-me lá:
Para que serviria ser poeta
Se não chorasse
Publicamente
Diante do mundo?

José Gomes Ferreira

(Em memória de José Caravela e António Maria Casquinha, mortos em Montemor-o-Novo às mãos da GNR em Set. de 1979 por defenderem a Reforma Agrária)