sessões com a Associação Espaço e Memória (Oeiras) – I

Com uma notável programação, esta associação cultural, a que tenho a sorte e o gosto de pertencer, tem vindo a preencher este meu Verão com visitas memoráveis:

Lá por finais de Julho, a visita, jantar e palestra no Forte das Maias, ali no final da praia de Oeiras, fortificação em recuperação e restauro – cuja cor escolhida para o mesmo, bastante mais rosada do que aquela que eu aqui aplico, levou algém a dizer que «há quem escolha cores para estes edifícios históricos como quem escolhe cuecas»… – não deixa, entretanto, de ser coisa notável de ser vista. Ainda que eu partilhe a opinião atrás vertida.

Com belos espaços que virão a ser orienatados para actividades culturais, aí está uma Oeiras para se recomendar.

«As viagens cruzadas de Fernão Mendes Pinto», palestra a cargo de Jaime Ramalhete Neves, condimentou o jantar, partilhado entre os sócios da Espaço e Memória e os Rotários de Oeiras, que o espaço dá bem para muitos..

Depois, rumando ao farol do Bugio, onde Joaquim Boiça sempre nos prende nos caminhos entre o seu saber e o seu sentimento, por ser ele filho de um dos últimos faroleiros e ser essa uma vertente da vida que desfralda qual bandeira, de que traz cada uma das cores no coração.  

É aquele um lugar mágico ou encantatório, ali semi-perdido, semi-esquecido, a meio do rio Tejo, testemunha de pedra à espera de maior sageza dos homens… E tal me sugeriu, no local, a circunstância:
entre o Tejo e o mar
ao sabor do encontro das águas
flutua um farol por desvendar
feito de sonhos e de mágoas
povoado de fantasmas sós
de maré-cheia – maré-vasa
aponta ao céu a sua voz
no grito que lhe traga o golpe de asa
e se nos serviu sempre e nos deu colo
sem receio das águas – sem ter sono
hoje o rio e o mar só lhe dão consolo
entre as praias distantes do abandono…
– poema e desenhações de Jorge Castro

ode à Primavera

ah
a Primavera
senhores
vou-me asinha
peregrino
à floresta de amores
sem destino
sem ter tino
duendes
fadas
flores
lascívias
doces quebrantos
e um céu
pelo arvoredo
mais azul que os agapantos

saltam faunos
saltam ninfas
deidades mil
ansiedades
sobra o verde
sobre o medo
cheio de verdes encantos
borboletas esvoaçam
entre flores que entrelaçam
a maciez das colinas
e águas rumorejantes
refrescam breves recantos
nos instantes de um olhar
como o pulsar desta mata
que palpita e se desata
se eu nela me embrenhar
soltam-se as aves dos ninhos
vozes de fazer caminhos
estevas e matagais

brilha a vida em cada alfobre
que sobre a vida nos sobre
na senda de viver mais
vive a vida a Primavera
contra a amargura dos ais

e
senhores
está ali à espera
da montanha à serrania
da serrania à planura
no sentir cheiro da terra
em mãos cheias da aventura
que vem do alto da serra
ao madrugar orvalhada
cresce a crescer cada dia
cresce além da desmesura
esta vontade de vida
seja por tudo ou por nada.

– poema de Jorge Castro

hoje vou acordar louco

hoje vou acordar louco
não de todo
só um pouco
para alterar a rotina
porei no carro uma vela
de navegar à bolina
pano usado
de flanela
um lençol já muito velho
de liso pano riscado
nas riscas escrevo um fado
escrito sobre o joelho
com bela caligrafia
que me console da azia
de tanta melancolia
que surge de todo o lado

tentarei que o dia corra
de feição diversa e brava
e a ver se a malta cava
deste atoleiro-masmorra
já quando alguém perguntar
se me pode analisar
o juízo ao microscópio
invocarei Rui Farinha
eminente cientista
que mudou o olhar que tinha
de fugaz a cornucópio
e num dia repentista
em vez de uma reles mezinha
inventou o avessoscópio
objecto extravagante
que ao mundo dá outro ar
e vira num breve instante
tudo de pernas p’rò ar

que eu estou farto deste olhar
sempre igual e regular
esboço a regra e esquadro
que é já tempo de outro tempo
de outra luz em contratempo
que assim nem mordo nem ladro

– à proa
à proa gajeiro
larga a vela e a caravela
descobre outra Barca Bela
de singrar pelo mundo inteiro
pois isto não vai lá com beijos
nem palpites
nem desejos
nem palmadinhas nas costas
há que chamar bois aos ditos
e se for preciso aos gritos
picadinhos ou às postas
já que a cena é velha e relha
e se com cornos deparas
se a pega não for de caras
que seja então de cernelha

se tudo muda
e se agita
se tudo corre
e se grita
no universo estrelado
porque haveremos só nós
de ficar pr’aqui sem voz
neste país mal parado?

– poema de Jorge Castro

rimas fáceis

pisamos este chão sem ter cuidado
como se não fosse bordado a gente e mar
como se fora já longínquo algum olhar
e o nosso corpo nele não espraiado

cruzamos um caminho mal tratado
com passadas onde passos sem parar
nos conduzem a destino sem lugar
e chegamos ao futuro em nenhum lado

e o tempo fica assim em nós perdido
e com ele nós perdidos de viver
ao vivermos uma vida sem sentido

mas ainda assim com medo de morrer
como se uma teimosia além do olvido
transcendesse ainda em nós razão de ser.

– soneto de Jorge Castro

o tapete persa

escrevo este poema desabridamente
sem lhe saber de contornos
ou até sequer dos cornos de agarrar o destino

escrevo-o assim
simplesmente
sem lhe querer humores de hino
que esse virá mais à frente

não!
ele hoje é só o menino do Torga
com seu cordel
que lanço aqui ao papel
e deita a língua de fora
à vida
e ao romper da aurora
quando nada há ainda urgente
e corre pelas ameias
do castelo das ideias – guardião do pensamento

nem corre
voa
em mil sinas
por montes
vales e campinas
tangido pela voz do vento

e lá vou com ele voando
através das neblinas
sem querer saber até quando
sem lhe ouvir sequer lamento
apenas pela alegria
que esta sim é viagem
pela infinita utopia
pelo longe da miragem
sobre o meu tapete persa

o resto?
ora adeus
são histórias
serão lérias
são mentiras
que me dás e que me tiras

tudo o mais é só conversa!

– poema de Jorge Castro