hoje vou acordar louco
não de todo
só um pouco
para alterar a rotina
porei no carro uma vela
de navegar à bolina
pano usado
de flanela
um lençol já muito velho
de liso pano riscado
nas riscas escrevo um fado
escrito sobre o joelho
com bela caligrafia
que me console da azia
de tanta melancolia
que surge de todo o lado

tentarei que o dia corra
de feição diversa e brava
e a ver se a malta cava
deste atoleiro-masmorra
já quando alguém perguntar
se me pode analisar
o juízo ao microscópio
invocarei Rui Farinha
eminente cientista
que mudou o olhar que tinha
de fugaz a cornucópio
e num dia repentista
em vez de uma reles mezinha
inventou o avessoscópio
objecto extravagante
que ao mundo dá outro ar
e vira num breve instante
tudo de pernas p’rò ar

que eu estou farto deste olhar
sempre igual e regular
esboço a regra e esquadro
que é já tempo de outro tempo
de outra luz em contratempo
que assim nem mordo nem ladro

– à proa
à proa gajeiro
larga a vela e a caravela
descobre outra Barca Bela
de singrar pelo mundo inteiro
pois isto não vai lá com beijos
nem palpites
nem desejos
nem palmadinhas nas costas
há que chamar bois aos ditos
e se for preciso aos gritos
picadinhos ou às postas
já que a cena é velha e relha
e se com cornos deparas
se a pega não for de caras
que seja então de cernelha

se tudo muda
e se agita
se tudo corre
e se grita
no universo estrelado
porque haveremos só nós
de ficar pr’aqui sem voz
neste país mal parado?

– poema de Jorge Castro