Nesta manhã fria e carregando comigo uma quantidade de vírus indesejados, fungando, tossindo e pigarreando, febril, em sinfonia gripal a solo, dou por mim, no meu passeio matinal, logo depois de um matinal café mal bebido, porque meio queimado, e a caminho do meu local de trabalho, a vociferar intimamente contra todos os concidadãos que estacionam as viaturas sobre os passeios, deixando aos peões uma nesga de circulação, entre tabiques de obras, caixotes do lixo ou lixo espalhado pelo chão ou, ainda e pior, dejectos de inumeráveis cãezinhos, que os donos respectivos se esquecem de recolher e levar para casa – tantas vezes, aos próprios cãezinhos…
Nada augurava, pois, um dia auspicioso e feliz.
E assim eu ia matutando, embatendo, involuntariamente e com dor, com o cotovelo nos retrovisores – que nem isso recolhem, esses egoístas condutores estacionados, apesar de correrem o risco, civilmente presumível, de um legitimamente arreliado cidadão lhes rebentar, a murro, essas excrescências das viaturas… – e lá que merecer, mereciam!
Mas, coitados e verdades sejam ditas, estacionar onde? Ao menos ali nem pagam o estacionamento. Os peões, assim como assim e de algum modo, lá hão-de safar-se.
Entretanto, em sentido contrário, aproxima-se uma jovenzinha, ajoujada ao peso de uma mochila quase maior do que ela, e em artes de dançarina – tal como eu – na gincana dos objectos obstáculos.
No momento de nos cruzarmos, encolhi-me todo, esmagando-me contra um carro – desejando intimamente que algum risco involuntário (mas merecido) na pintura compensasse a sujidade que ficaria agarrada ao meu casacão – e cedi-lhe a passagem possível, que consistia numa nesga onde mal cabíamos ambos, não houvera ginásticas de delicadeza.
A jovenzinha ergueu o olhar para mim, sorriu e disse-me obrigada.
E tanto bastou para que, de súbito, eu sentisse o mundo com outro olhar.
Ocorreu-me Sampaio da Nóvoa, numa sua palestra sobre esta forma portuguesa de agradecer, em que invoca São Tomás de Aquino, no seu Tratado da Gratidão, dissertando sobre esta manifestação do terceiro nível de agradecimento que, ao que parece, apenas em Portugal é usado: obrigado.
Apesar de tudo, há sempre a possibilidade de um sorriso e de uma manifestação de humanidade quando menos se espera e por mais singela que ela seja. Não saberá a jovenzinha o bem que me fez, nem eu saberia pagar-lhe por esse bem.
Mas, sim, também eu lhe fiquei, sentidamente, obrigado.
– Jorge Castro
28 de Dezembro de 2016