Da alma dos gatos

há um verde de sabedoria intensa
que atravessa penumbras do meu espaço
através do olhar da minha gata

– que não é minha
pois só ela se possui –

e que tem essa imensa sabedoria
tão própria da circunstância biológica de se ser gato

sabe tudo o que sabe
sabe tudo o que é preciso saber
sabe ver o deslumbramento da escuridão nocturna
pelo brilho das estrelas
e devolve-nos esse olhar cheio de condescendências

deve ser bom ser-se gato
ter-se o mundo ao alcance da pata
e quando não
um simples salto basta para alcançar o mundo

deve ser bom ser-se gato
olhar e ver através de um mutável olhar todo verde
a ironia ou o desencanto a escoarem-se pela ponta da cauda
sem permanecerem viciosas por baixo da pelagem
ronronar sempre que nos apetecer

e
ainda assim
permanecer sempre gato

inexorável e intransigentemente gato.

– Poema e foto de Jorge Castro

A esperança, os canhões e a lusitanidade

… pois, pois…
parece-me que ainda não é desta que se verá a luz ao fundo do túnel…

e lá vamos outra vez contra os canhões
contra as tangas os burlões e tudo a sete
esgravatando em magra bolsa pelos cordões
onde dorme o triste pó e a cotonette

sai imposto e mais imposto à tripa forra
aldrabice já lá vem bem mais de um cento
faz pensar que ir parar a uma masmorra
será mal menor e traz-nos mais sustento

entretanto é trabalhar ó vilanagem
quanto mais velho melhor com mais afinco
e p’ra melhor sustentar a gandulagem
sendo pouco os sessenta vão mais cinco

vê lá tu meu teso que não dobraste
a cerviz por não seres um vil lacaio
hás-de curvar-te agora quanto baste
pela força dos bicos de papagaio

e – cautela! – não vás por aí finar-te
num escritório ou atracado a algum torno
que o estado à família há-de cobrar-te
p’la armazenagem do teu corpo algum estorno

pois não pára a fuçanga desmedida
desta troupe que nos condena à dieta
que não medra em ponta de obra conhecida
mas que aldraba tanto tolo c’o esta treta

e vogamos pasmando espapaçados
neste lodaçal de petas e cinismos
futebol p’ra domingos bem passados
… pouco falta p’ra nos darem catecismos

já que sobram futebóis e muitos fados
tiazinhas de viver parvo e medonho
abastança de dinheiros emprestados
para comprar e vender até o sonho

mas enfim… p’ra animar um pouco a tropa
ainda não somos a cauda do planeta
e havemos de chegar a essa Europa
nem que seja a rastejar e sem ter cheta

– Jorge Castro

porque é que isto não tem graça nenhuma?…

Recebida no meu email, esta mensagem não contribuiu nem um bocadinho para combater o estado pré-agónico em que me encontro, à espera de saber das últimas novidades do nosso bem-amado Sócrates para combater o déficit e que se adivinham já todas velhas…

Ser português é:

– Levar arroz de frango para a praia.
– Guardar aquelas cuecas velhas para polir o carro.
– Ter tido a última grande vitória militar em 1385.
– Guiar como um maníaco e ninguém se importar com isso.
– Levar a vida mais relaxada da Europa, mesmo sendo os últimos em todas as listas.
– Ter sempre marisco, tabaco e álcool a preços de saldo.
– Receber visitas e ir logo mostrar a casa toda.
– Pôr os máximos para avisar os outros condutores da polícia adiante.
– Ter o resto do mundo a pensar que Portugal é uma província espanhola.
– Exigir que lhe chamem “Doutor” mesmo sendo um Zé Ninguém.
– Passar o domingo no “shopping”.
– Tirar a cera dos ouvidos com a chave do carro ou com a tampa da esferográfica.
– Axaxinar o Portuguex ao eskrever.
– Ir à aldeia todos os fins-de-semana visitar os pais ou avós.
– Gravar os “donos da bola”.
– Ter diariamente pelo menos 8 telenovelas brasileiras na tv.
– Já ter “ido à bruxa”.
– Filhos baptizados e de catecismo na mão mas nunca por os pés na igreja.
– Ir de carro para todo o lado, aconteça o que acontecer.
– Ter evacuado as Amoreiras no 11 de Setembro 2001.
– Viver mal e dizer que o governo que temos é bom.
– Graças a Deus, não ser espanhol.
– Lavar o carro na fonte ao domingo.
– Não ser racista, mas abrir uma excepção com os ciganos.
– Levar com as piadas dos brasileiros, mas só saber fazer piadas dos alentejanos.
– Ainda ter uma mãe ou avó que se veste de luto.
– Viver em casa dos pais até aos 30 anos.
– Acender o cigarro a qualquer hora e em qualquer lugar sem quaisquer preocupações.
– Ter bigode e ser baixinho(a).
– Conduzir sempre pela faixa da esquerda.
– Ter três telemóveis.
– Jurar não comprar azeite Espanhol nem morto, apesar da maioria do azeite vendido em Portugal ser espanhol.
– Deixar a telenovela a gravar.
– Organizar jogos de futebol entre solteiros e casados.
– Ir à bola, comprar “prà geral” e saltar “prà central”.
– Gastar uma fortuna no telemóvel mas pensar duas vezes antes de ir ao dentista.
– Super-bock, tremoços, caracóis e marisco.
– Ser capaz de cometer 3 infrações ao código da estrada em 5 segundos.
– Graças a Deus, não ser brasileiro.
– Algarve em Agosto.
– Ir passear de carro ao domingo para a avenida principal.
– Dizer “prontos” no fim de cada frase.

Crónica de Estranho E Mal Fazer

certo dia num sobredo uma bolota traquinas
danadinha p’rò folguedo entre as bolotas meninas
por força de caganita que um melro depositara
ao volejar sobre a dita bolota que se agitara
deu por si num alvoroço caindo desamparada
lá do alto da galhada no toutiço de um moço
que dengoso ali passava
e o moço mal encarado
– que ao humor nunca fiava –
pô-lo a bolota assustado no imprevisto da queda
descuidada no pexote
fica o mancebo danado com a mancha sem Quixote
e na pança o fidalgote leva um Sancho ataviado

assustado e vingativo
suja a camisa de seda
borrado o seu porte altivo
ali jurou o magano mal chegasse a executivo
cumprir um rijo plano contra o sobreiro inimigo

e que plano era esse que tal cabeça albergou?
ora desse por onde desse
de serra em punho e machado
malas-artes que inventou
mal algum sobreiro visse ao chão seria lançado

num piscar de olho e trejeito
e muito padrinho ao lado
ei-lo já feito bancário
sobreiros derruba a eito a cumprir o desidério
dando-lhe cores de cruzada
torpes razões de mistério
arranca – rasga – trucida
tudo desmata o experto
faz da terra assim despida antecâmara do deserto

do deserto ou do inferno
que há já p’r’aí quem duvide deste mau feitio eterno
e vê-lo infrene em tal lide
sanha tal em que se engolfa
lá diga à boca pequena
que ele quer é campos de golfe
roubando à terra morena a verdura do arvoredo
p’ra gáudio só do turista
deixando à malta pequena alguns grãozitos de alpista

segue pois deficitário o povinho no pagode
nas mãos de algum salafrário
que come mais do que pode
que pode mais do que deve
que deve… ah quanto deve!…
jamais se lhe acaba o rol
e ele é campos de golfe e campos de futebol
para isso é um mar de água
só o campo morre à sede
sobra a fome… sobra a mágoa

e no entanto olhai – vede
como ele medra e prospera
o grande artista sem rede a trepar à estratosfera
enquanto minga o portuga entre golfe e futebóis
com tanta relva trânsfuga
lá petisca uns caracóis
entalado na fartura do viver sem estribeira

ficou mole a dita dura
encrespado o mar da asneira
e há tanto médico à cura deste mal de pasmaceira
que há-de ‘inda morrer da cura
este povo que premeia o viver à lei da selva
e ruminante toupeira que de verde só tem relva
p’r’além do verde só mato
mal a esperança mora em Huelva
há que dar corda ao sapato

mas… luz se faz no horizonte
ao céu se abre o olhar mais puro que a pura fonte
‘inda mais leve que o ar
vem um constâncio que prega – que praga! –
contra a tormenta dos tempos de cegarrega
– que a malta já nem aguenta!… –
contra ventos e ordenados
aumentos e outros dinheiros
nos campos abandonados há que plantar sobreiros
que preciso é cuidar bem
com carinho e com justiça
do pouco que o povo tem…
e pô-lo a comer cortiça!

– Jorge Castro

Rimanço do bobo sobre o Pedro e a Inês

(não esquecer que este é o ano inesiano e – vá lá saber-se – ainda descubro que tenho ali uma prima…)

entra o bobo num rompante
e alucinante grita o entremez
truão e tonitruante
sape-gato pronto
nem sei que te fez:

da Inês
coitada de amante
coração de pomba e era uma vez

do Pedro
coração de pedra mas de paixão cega
pela sua Inês

e um mais um não são dois
já que mais depois
se fizeram três

logo esse tal Dom Afonso
a fazer de sonso
meteu o nariz

naquele amor tão carnal
et coetra e tal
que matou por três
quando de punhal fatal
e tão desigual
matou D. Inês

fez-se no simples instante
o D. Pedro infante
rei cru e infeliz

desvaira
e doido varrido de tão desvalido
dá caça à má rês

e quando lhes deitou a mão
querem lá saber o que é que lhes fez?

numa fúria delirante
arrancou pela frente e outro por trás
os corações gelados
a dois dos malvados
foi zás-catrapás!

no fim
asinha-asinha
à Inês já morta
coroou rainha…

o quê? e tu não gostaste?
nem te entusiamaste?
nem tu? nem tu? nem tu?…
vê lá se queres que eu ainda
vá fazer queixinhas
ao D. Pedro
o cru.

sai o bobo em cambalhota
e a sua perna torta
fica para trás
a dizer adeus à malta
e o Pedro na escolta
leva a Inês atrás…

– Jorge Castro