quotidiano delirante (11)
– breves, muito breves reflexões aleatórias…

Uma vaga de frio polar assolou-nos, pelo menos segundo tudo quanto são os avisadores da catástrofe nacional… e quase ninguém deu por isso. Num qualquer sinistro, as vítimas mortais foram setenta e duas ou três ou quatro ou oitenta e cinco, consoante o «órgão noticioso» que propala a notícia. A libertação de um prisioneiro israelita é «trocada» pela libertação de quatrocentos e cinquenta palestinianos. Este ano o Carnaval português é só para alguns e pensa-se que esses alguns possam (ou devam) não ser piegas. O quadro «Os Jogadores de Cartas», de Paul Cézanne, é vendido e comprado por 250 milhões de dólares, sendo o comprador a real família do Qatar, a qual vive repimpada sobre os custos do petróleo que promove em seu benefício. Onze mil crianças morrem de fome no mundo, a cada dia que passa. Um sem-abrigo foi condenado a multa de milhares de euros por furtar um champô e uma bebida num supermercado do norte. O governo português prepara-se para injectar mais 600 milhões de euros no BPN, para o vender, de seguida, por 40 milhões. Na Europa começam a proliferar os políticos não eleitos à frente dos destinos dos respectivos países, ditos democráticos…
Não há qualquer fio condutor nestes nacos desgarrados, para além de serem eles sinais palpáveis da actualidade a que nos deixamos conduzir, um pouco por todo o mundo.
Qualquer noticiário desta actualidade num simples dia é profundamente mais surreal do que foi alguma vez um filme como «O Mundo Cão», que nos sobressaltava de estranheza há umas poucas dezenas de anos.
Urge acabar com isto antes que isto acabe connosco.

E ñem sei se estou a ser piegas ou se estou a ser pessimista em demasia. Mas estou, seguramente, a reflectir aquilo que uma misérrima mão-cheia de políticos de pacotilha anda a fazer.

uma vaidade no raiar do novo ano só me pode fazer bem…

Um excelentíssimo começo de ano, se me permitirem imodéstias: – proveniente das Astúrias, um artigo referindo, entre outras coisas, sugestões sobre a poesia contemporânea portuguesa, publicado no blog Las mil caras de mi ciudad, onde o autor, José Luis Campal, me descobriu merecedor de referência, a par de João L. Barbosa, o que ainda para mais me deixa em óptima companhia.    

POESÍA PORTUGUESA DE AHORA, por JOSÉ LUIS CAMPAL
(Artículo exclusivo para el blog Las mil caras de mi ciudad, gentileza del filólogo JOSÉ LUIS CAMPAL)
¿Y ahora mismo? El número de poetas en activo en Portugal seguramente es tan abundante, me imagino, como en nuestro país (y algún día habrá que elaborar un repertorio bibliográfico al uso). Dado que la mejor carta de presentación de los escritores es su propia palabra, aportaré, por mi parte, y sin ánimo de jerarquizar su relevancia en el panorama general de las letras lusitanas, una traducción castellana (excusándome por la inevitable cojera que toda traslación idiomática comporta) de dos concisos poemas pertenecientes a dos creadores contemporáneos de cuya obra tengo excelente opinión: Jorge Castro y João L. Barbosa.
JORGE CASTRO, nacido en Porto en 1952, ha publicado los siguientes poemarios: Sopa de pedras (2003), Odes no Brejo & Alguns pecados (2005), Contra a corrente (Poemas que eu digo) (2005), Coisadas… assim ao correr do poema (2006), Havia trigo (2006), Auto das danações (2007), Poemas de menagem (2008), Ti miséria (2009), Apenas alguns poemas de cordel (2010) y Vinte poemas por amor e uma canção inesperada (2011). Del libro Poemas de menagem (Lisboa, Apenas Livros) vierto a continuación, respetando escrupulosamente la ortografía del original, la pieza «Casi nada en fin de casi todo» (página 33), una reflexión existencial sobre el plan de vida en cuyo espejo más de uno verá quizá reflejados sus íntimos afanes y congojas:
Casi nada en fin de casi todo
se alcanza de cuanto en la vida pretendemos

casi nada más delicado y estrecho
que lo que la línea de un abrazo nos hermana

casi nada o casi todo
y desengaños
serán lazos más unidos que creamos

en la urgencia vital
nos queda el modo
de vivir así mejor
cuando nos entregamos.
JOÃO L. BARBOSA, nacido en 1970, ha publicado los siguientes poemarios: Ninfa (2004), Tejo (2005), Eros (2005), O movimento do pêndulo (2007), Memória da terra (2008), Visíveis a olho nu (2008), O sol quando nasce (2009) y Debaixo de chuva (2011). Del cuaderno Memória da terra (Lisboa, Apenas Livros) vierto a continuación, respetando escrupulosamente la ortografía del original, la pieza «Piel de la tierra» (página 14), en la cual la voz poética ansía fundirse con el elemento telúrico de donde en su día emergiera, borrando las distancias que separan a ambos, hombre y medio:
la tierra labrada.
llego descalzo
de todo, desnudo.

poros con poros

heme aquí cuerpo maduro, fruto
de semilla lanzada en otra tierra

heme aquí erguido,
tronco desnudo de tierra

heme aquí tierra con piel
sobre la piel de otra tierra.
El escrutinio le corresponde ahora al lector. ¿Acaso no sería más que deseable que conociéramos en profundidad la realidad poética portuguesa?

as pontes que não sabemos construir

Não se trata já sequer de indignação, de desprezo ou de asco. Trata-se, talvez, de uma mescla de tudo isso e muito mais que configura o que, com mais propriedade, chamaria raiva.
Ultrapassei, pois, a fase de ser mais um mero indignado, para acrescentar a componente activa e passar a considerar-me enraivecido. Enfim, as palavras valem o que valem…
Mas mal ouço falar em «pontes», como elemento perturbador da produtividade nacional, não posso deixar de sentir vontade de comprar uma funda.
Mas logo que me falam em prestação de mais meia-hora de trabalho a troco de nada, como factor preponderante para a competitividade das empresas, não deixa de me ocorrer um ímpeto de me munir com uma moca.
– ver crónica completa no blog PERSUACÇÃO – 

não sei porquê, fez-me lembrar José Niza…

Iniciava cedo o seu labor da pedincha. Ainda a manhã se estremunhava, com os olhares sonolentos dos passantes que madrugavam a caminho do cafezinho que antecede o labor diário e já ela se apressava a tomar o seu posto, ali ao Campo Pequeno, vinda de longínquas Bulgárias ou Ucrânias ou o que fosse o seu ponto de partida que ali desembocava, rodeada das latas e copos de plástico vazios e sujos da cerveja da véspera.
Com a ponta do xaile, ponteado a branco e preto em arremedos de pied-de-poule para pobres, sentou-se sobre um minúsculo rectângulo de cartão que trazia escondido na roupa, limpou o copo de plástico mais próximo, atirou lá para dentro duas ou três moedas escuras, com que fabricou uma espécie de chocalho a rebate da pobreza.
E a manhã passou a contar com mais aquela melopeia monocórdica, monótona, impessoal e pungente, de uma voz anasalada com o chamamento à atenção de cada passante reforçado pelo chocalhar da miséria.
Não sei que artes teve este quadro para me evocar o E Depois do Adeus, do José Niza. Talvez aquele céu matinal, de pouco azul e sol nascente a furar nuvens inconsistentes e tíbias tivesse ajudado um pouco à melancolia e o poema de Abril, expurgado de quanto um amor entre dois seres revela, apenas me deixasse alguns versos de angústia e nostalgia:
Quis saber quem sou
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
(…)
Em silêncio, amor
Em tristeza e fim
Eu te sinto, em flor
Eu te sofro, em mim
(…)
E depois do amor
E depois de nós
O dizer adeus
O ficarmos sós
Coisas da «crise», decerto, que eu não me dou nem com angústias nem com nostalgias. Mas ainda estou a trautear a canção e já vai alta a manhã.