Iniciava cedo o seu labor da pedincha. Ainda a manhã se estremunhava, com os olhares sonolentos dos passantes que madrugavam a caminho do cafezinho que antecede o labor diário e já ela se apressava a tomar o seu posto, ali ao Campo Pequeno, vinda de longínquas Bulgárias ou Ucrânias ou o que fosse o seu ponto de partida que ali desembocava, rodeada das latas e copos de plástico vazios e sujos da cerveja da véspera.
Com a ponta do xaile, ponteado a branco e preto em arremedos de pied-de-poule para pobres, sentou-se sobre um minúsculo rectângulo de cartão que trazia escondido na roupa, limpou o copo de plástico mais próximo, atirou lá para dentro duas ou três moedas escuras, com que fabricou uma espécie de chocalho a rebate da pobreza.
E a manhã passou a contar com mais aquela melopeia monocórdica, monótona, impessoal e pungente, de uma voz anasalada com o chamamento à atenção de cada passante reforçado pelo chocalhar da miséria.
Não sei que artes teve este quadro para me evocar o E Depois do Adeus, do José Niza. Talvez aquele céu matinal, de pouco azul e sol nascente a furar nuvens inconsistentes e tíbias tivesse ajudado um pouco à melancolia e o poema de Abril, expurgado de quanto um amor entre dois seres revela, apenas me deixasse alguns versos de angústia e nostalgia:
Quis saber quem sou
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
(…)
Em silêncio, amor
Em tristeza e fim
Eu te sinto, em flor
Eu te sofro, em mim
(…)
E depois do amor
E depois de nós
O dizer adeus
O ficarmos sós
Coisas da «crise», decerto, que eu não me dou nem com angústias nem com nostalgias. Mas ainda estou a trautear a canção e já vai alta a manhã.