Tu sabes que eu te visito pouco. Trago saudades que, depois, levo. Mas sinto a falta, de longe em longe, da neblina que vem do rio e daquele «timbre pardacento», do Carlos Tê, que faz lembrar um portal do tempo a transportar-me para lá da vida.

Então eu cá venho, de longe em longe, pagar tributo de nascimento. A ver o Douro encrespar-se ao mar, espreitar furtivo e malicioso as pernas das pontes todas que o vão cruzando. O casario a vê-lo passar, espreitando-o por mil janelas, ora dourado, a fazer jus ao nome, ora eivado de tons de azul, em diálogo de nuvens, e carreando barcos que levam tantos turistas quantas as pipas que, antes, traziam.

Rabelos sem velas desvendam as tuas margens, mas não mostram os teus segredos. As carqueijeiras a penar íngremes ladeiras. A canalha a mergulhar no rio à cata das cinco coroas lançadas por mão pródiga, quando não do mísero tostão. O vozear das crianças, nas «ilhas», a modos que creches de aflição, ou o menino de pé descalço que cantava, pelas esquinas, acompanhado pelo pai, com uma guitarra velha, e vendendo as letras, para arrecadar os tostões da sobrevivência. As lavadeiras a ensaboar as tuas águas de conversas brejeiras e palavrão de exorcizar pecados velhos, a perna ao léu que tinha sempre mirones a apreciar. As cheias, que subiam pelas casas acima, na zona ribeirinha, e que eram tanto espectáculo como aflição de rotina. A faina do rio, com o Gastão, pelo meio do enredo, a salvar vidas ou a resgatar corpos…

Quero confessar-te que nada tem de nostalgia esta minha conversa. Mas, mal atravesso uma das várias pontes que me fazem chegar a ti, estas memórias saltam-me, recorrentes. E que lhes hei-de eu fazer? Contrariá-las? Nem pensar… E, depois, eu fazia-me de quê?

  • Jorge Castro
    15 de Setembro de 2021