Era uma vez uma empresa pública, graças à qual se pôde electrificar todo o País.
Essa empresa, que liberais e neoliberais pouco iluminados (ou ofuscados com tanta luz) vituperaram alarvemente e anos a fio por se tratar de um «ignóbil monopólio», era a herdeira institucional de todas as empresas privadas que a integraram, na sua génese, herança essa que preservou e ampliou, nessa dimensão nacional que, entretanto, lhe fora atribuída.
Então, a primeira profunda machadada em favor dos «críticos» – no sentido de acabar com o tal «ignóbil monopólio» – foi, em determinado momento histórico muito ligada a cavacal figura, a sua privatização, ainda que o Estado mantivesse uma posição preponderante, a que se chamou, já na mania das inglesices, «golden share».
A seguir, um deus-nos-acuda porque o Estado não podia manter a «golden share», porque a Europa não nos autorizava e tal e urgia dar resposta aos ditames europeus, porque não podíamos ficar mal vistos e vinham aí penalizações graves.
Ditames esses para os quais os mesmos países que clamavam contra a «golden share» do Estado português se estavam, internamente, nas tintas. Veja-se o caso paradigmático da EDF, em França, que deu a volta ao assunto com luvinhas de pelica e sem dores de cabeça, mantendo, objectivamente, o status vigente, ou seja a sua posição preponderante na empresa francesa… até por causa da «importância estratégica» que, aparentemente, no caso de Portugal não se colocava.
Nesta história da Carochinha não devemos perder de vista a quantidade imensa de lobos maus que espreitavam, escondidos atrás das muitas árvores da floresta dos interesses, sempre à espera de comerem a Capuchinho Vermelho, a avozinha e o que mais viesse à rede.
Essa EDP, empresa pública, lucrativa a bem de nós todos, ainda que parasitada das mais diversas formas e feitios – veja-se a concelebrada Taxa da Radiodifusão Sonora, integrada na sua facturação sem qualquer lógica, sequer funcional – era tão relevante que chegava a funcionar, em tempos heroicos mas não muito longínquos, como avalista do Estado Português em momentos de aperto financeiro…
Como empresa pública eficaz e lucrativa que era, mete-se pelos olhos dentro que a sua privatização, se possível integral, daria de comer a muita gente, dessa que sobrevoa todos os negócios lucrativos em busca de carniça.
E, após episódios engraçados como a privatização de uma parte significativa da sua estrutura, que era a Rede Eléctrica Nacional, logo renacionalizada e, a seguir, privatizada, outra vez, e o que mais adiante se verá, lá privatizaram a EDP.
Então, já privatizada e dando de comer a tantos que têm sempre tanta fome de poder… volta a ser nacionalizada mas, agora, em prol de um estado estrangeiro, a China, que, como se sabe, está fora da jurisdição da Europa.
Pelo caminho, fica a certeza de que entre o preço do quilovátio acrescido dos «encargos de potência», mais as taxas e taxinhas concomitantes, no Portugal privatizado se paga das mais caras energias eléctricas do mundo.
Caso para se dizer que ainda bem que se acabou com o «ignóbil monopólio», não é? Pois é…
Também não adianta muito falar das empresas da «concorrência» pois que, estudando bem as suas facturas, nelas se verifica que, mais arroba, menos quintal, todas vão dar ao mesmo.
Na mesma lógica do «venha a nós o vosso reino», a actual gestão da EDP não tem qualquer pudor em alienar a uma empresa francesa, a ENGIE – cujo capital é detido, em cerca de um terço, pelo Estado Francês, o que não deixa de ser irónico –, boa parte das suas barragens do Rio Douro, nomeadamente as localizadas no Douro Internacional.
Essas três barragens – Picote, Miranda do Douro e Bemposta – foram inclusivamente intervencionadas muito recentemente, com significativo reforço do seu potencial produtivo, muito provavelmente a expensas do público pagante, naquela cena do apoio ao reforço das energias renováveis e tal…
A autarquia mirandesa – e, em minha modesta opinião, muito bem – reivindica uma série de contrapartidas, em relação à empresa compradora, decorrentes do facto de tais instalações produtivas se encontrarem em território concelhio.
Encurtando razões em texto já tão longo, diremos apenas que boa parte dessas contrapartidas foram votadas na Assembleia da República, no âmbito do Orçamento de Estado para 2021.
Assim, a região conseguiu ver aprovada, no OE 2021, norma que lhe garante uma parte maior dos impostos resultantes da actividade das barragens, reivindicação antiga reforçada, este ano, por um movimento cultural, com grande pujança, nascido e criado em Miranda do Douro e englobando todos quantos consideram Miranda a sua terra.
Uma curiosidade final: a votação à proposta apresentada pelo PSD, foi aprovada com os votos a favor do CDS, PCP e BE, a abstenção da Iniciativa Liberal e do Chega, e os votos contra do PS e do PAN (…?).
O actual governo garantia, há poucos meses, que a venda de tais barragens só ocorreria após profundo escrutínio governamental, a bem dos superiores interesses da nação. Mas, sem qualquer transparência informativa, as barragens lá foram vendidas, como se estivéssemos a tratar de sacos de batatas.
O autarca Artur Nunes considera que o «engrossar de voz» da população, muito apoiada nos movimentos culturais e na diáspora de mirandeses, ajudou a dar visibilidade a um problema antigo.
Sabendo nós que um dos defensores mais convictos e actuante – e daqui lhe tiro o meu chapéu por isso – é o senhor Presidente da Câmara de Miranda do Douro, eleito pelo PS, cá me fico pelo comentário de que, em face da votação verificada, haverá sempre razões que a razão desconhece…