Levantei-me cedo. Hoje é preciso ir ao pão ou à farinha, pois já escasseiam cá por casa. Quando me aprontava para sair, ocorreu-me que o horário matinal está destinado preferencialmente aos velhos… Ora, não estou nada de acordo com estas discriminações sociais, portanto vou esperar pelas onze da manhã para sair.

Entretanto, muni-me de dois pares de luvas, da máscara mais ou menos cirúrgica – à cautela, coloquei outra máscara na minha mala, não vá o Diabo tecê-las – e de uma viseira protectora. Além disso, muni-me de um saco de plástico onde irei guardando o material utilizado.

Escolhi o calçado destinado a ir à rua e deixei atrás da porta umas calças, uma camisola, um par de peúgas e um par de chinelos caseiros para substituir a roupa que usarei no exterior. Também aí coloquei um cesto para onde lançar os produtos que vier a adquirir, além do pão, já que é sempre fundamental aproveitar estas excursões ao exterior e todos os cuidados são poucos, pois sabe-se lá por que mãos já terão passado por todos aqueles produtos e respectivas embalagens.

Quando, finalmente, me dirigi para o meu carro, aspergi-o, primeiro, em vários pontos sensíveis, susceptíveis de terem sido tocados por estranhos – utilizando uma das luvas, para a esfrega necessária. Retirei a luva, segundo os preceitos da OMS para a remoção de luvas, e entrei na viatura.

Estacionei com facilidade, pois, por estes dias, há felizmente muito pouco trânsito junto da praça onde me abasteço regularmente. Pelo caminho passei pela caixa multibanco, para fazer uma consulta de saldo e levantar algum dinheiro… Claro que calcei outra luva e muni-me de uma cotonete para pressionar as teclas, como mandam as boas normas de acautelamento.

Peguei nas notas com a mão sem luva, para não contaminar as notas, retirei a luva com a qual embrulhei a cotonete, sempre respeitando os ditames da OMS e depositei tudo, cuidadosamente no saco de plástico de que me munira para a recolha destes desperdícios.

Entrei com facilidade no mercado. Estavam apenas vinte pessoas à minha frente. Após a fila de contenção ultrapassada, chegada a minha vez, empurrei o fecho da porta com o cotovelo e a porta envidraçada com as costas – já era tempo de terem montado uma porta de abertura automática.

Escusado será referir que, por esta altura já tinha calçado o par de luvas restante, colocado a máscara e a viseira e fechado o casaco exterior até ao pescoço.

Também o senhor da segurança, à porta, me mimoseou com algumas aspersões complementares, que agradeci, prontamente.

Após esperar um pouco pelo desembaciamento da viseira provocada pela diferença de temperaturas, senti alguma dificuldade em fazer-me entender nas diversas bancadas onde me dirigi, pois as máscaras não facilitam o diálogo. Depois de passar pelo peixe, que logo acondicionei no saco das compras – o qual, aliás, tentei nunca colocar no chão, contaminadíssimo, decerto, entalando-o entre as pernas… – aspergi, vigorosamente, as luvas que esfreguei diligentemente e conforme os preceitos, antes de me dirigir ao balcão seguinte, para me abastecer do pão.

Pedi pão, que irei comer fresco entre hoje e amanhã, provavelmente congelando mais algum, mas pouco, que eu não sou de açambarcamentos inúteis.

Acondicionei-o junto ao peixe, repetindo as operações antes descritas… quando me lembrei que os sacos respectivos, para bem, também deveriam ter sido devidamente aspergidos e esfregados… mas esquece sempre qualquer coisa!

Prossegui por mais duas compras, sempre seguindo as normas processuais descritas, e cheguei ao fim deste périplo com a certeza relativa de que, graças a elas, não deveria estar a correr grandes riscos de contaminação.

Saí pela porta envidraçada depois de ter borrifado a maçaneta para a sua abertura, o que fiz, claro, com o cotovelo, empurrando-a com as minhas costas. A manobra revelou-se algo complexa, pois o puxador não foi pensado para este tipo de constrangimentos.

Dirigi-me ao carro, procedi à desinfecção sumária, absolutamente necessária, de possíveis zonas de contacto, descartei a viseira, a máscara e as luvas (por esta ordem) depois de colocar o saco das compras na mala do carro.

Aqui sobreveio aquela angústia de nunca saber se devo colocar, primeiro, o saco no carro ainda usando as protecções possivelmente infectadas, ou se hei-de manusear o saco, também ele possivelmente infectado, só depois de retirar o equipamento de protecção.

Entretanto, acautelei sempre a possibilidade do saco não tocar no chão, entalando-o entre as pernas.

Entrei na viatura. Dirigi-me directamente para casa. Ao chegar, esperava-me o carteiro com uma pequena encomenda, para a entrega da qual carecia de uma assinatura. E eu que já não tinha mais luvas… Toquei à campainha, esperando que a minha companheira me pudesse providenciar o material de protecção necessário, o que veio a acontecer: luvas e máscara (ainda bem que levara uma sobresselente), claro, pois a viseira talvez não fosse necessária, ainda que…

Depois do senhor carteiro se retirar, deixei a encomenda de quarentena numa arrecadação exterior, levei as compras para a caixa que deixara à entrada, tendo substituído previamente os sacos que continham cada produto, mudei de roupa, descartei este último conjunto de material de protecção, cumprimentei os vizinhos com um sonoro bom-dia. Os vizinhos aparecem sempre quando algum de nós está nesta fase de cuidados preventivos.

Calcei um novo par de luvas e levei a roupa utilizada para a máquina de lavar, e deixei os sapatos ao sol – duvidoso, pois hoje está de chuva… – após o que eu próprio me fui lavar cuidadosamente, com especial cuidado e prioridade para as mãos, claro.

De consciência cívica tranquilizada, apurei o saldo do dia: quatro pares de luvas usadas, duas máscaras, uma viseira, nove sacos de plástico… e almocei às quatro horas e trinta da tarde.

Cuidem-se, hem?

Jorge Castro

  • 18 de Abril de 2020