Pois, da eutanásia eu sei muito pouco. E, quanto a experiência, nenhuma. Nem é de bom tom ironizar com matéria tão densa e tão pungente. Apesar disso, tenho para mim algo que não me suscita dúvidas: se o indivíduo estiver lúcido, a decisão deverá ser apenas dele. E daqui não saio.
Mas há algo que me preocupa, dir-se-ia, a montante da eutanásia. E, isso sim, é algo de que, enquanto mero cidadão, considero ter sobeja experiência por recorrentes situações familiares próximas em que me envolvi: os cuidados paliativos ou tão-só a assistência na solidão da velhice, agravada pela doença.
E aí, sim, dar-me-ia especial gozo apurar uma campanha referendária, tentando apurar os desígnios do bom povo.
Portugal, nesta matéria, é um exemplo deplorável. Não sei nem me interessa saber o que faz, neste âmbito, o resto do mundo. Não. Refiro-me só ao meu país, onde pagamos impostos (claro, só estou a falar para este sector da população e para os elementos familiares a ele adjacentes…), elegemos presidentes e deputados e autarcas e sindicatos e associações e tal, e somos já uma alegada democracia avançada.
A matéria é de tal modo densa e extensa que nem saberei, em boa verdade, por onde lhe pegar para não tornar este arrazoado numa croniqueta impossível de aturar.
Assim, resumidamente, direi que, tendo passado (e estando a passar) por diversas experiências, cada uma mais traumática do que a anterior, falo de cátedra ao dizer que o sistema de saúde, segurança e apoio sociais instituído em Portugal… só virtualmente existe, no que respeita à tristemente concelebrada terceira idade (e quarta e quinta e etc.).
Espanta-me, pois – ou talvez não – aquilo que com grandes palavras chamarei o cinismo hipócrita que escuto dos diversos agentes no terreno que se afoitam a dissertar sobre a eutanásia e apenas muito, muito raramente, referem ao de leve o descalabro a que está sujeita uma fatia considerável de concidadãos, absolutamente abandonados à sua sorte… ou à falta dela.
Experimentem acompanhar um vosso familiar (ou amigo), com grau limite de incapacidade a um hospital público ou mais-ou-menos. Umas análises, uma prescrição de uns comprimidozecos e uma palmada nas costas «então-vá-lá-para-casa-curtir-as-dores-e-a-maleita», despachado em alta velocidade, não vá ter a veleidade de se deixar morrer por ali, atrapalhando o tráfego, como diria o Chico Buarque.
Dos privados nem falo. Aí reza o dinheiro e, em função dele ou da sua ausência, assim decorre o atendimento.
Para aqueles que me estejam a olhar de lado, desconfiando que o gajo esteja a resvalar para a direita populista, sempre vos relato um facto, isso mesmo, uma coisa que me aconteceu: a minha mãe, após operação extensa à coluna por metástases de doença oncológica, no Hospital Egas Moniz, e depois de a terem despachado, três dias depois (!), «para recuperação» no Hospital de Cascais, apesar de se saber que não havia recuperação possível (e, já agora, nem serviços de oncologia naquela unidade…), onde ficou cerca de dez dias numa cama num corredor, deitada de costas – o que nos tinha sido anunciado como absolutamente contra-indicado -, passou uns breves dias num quarto com mais uma dúzia de moribundos, após o que lhe deram alta.
Note-se que os três filhos sempre estiveram presentes, diariamente e várias vezes ao dia, e daí nem se poder falar de algum caso de abandono familiar.
O que é verdade é que, certo dia, estávamos no inverno, ao chegar ao Hospital de Cascais, pelas 19 horas, deparei com uma maca, na portaria, onde se encontrava a minha mãe, parcamente agasalhada, absolutamente incapacitada de se locomover e padecendo de dores atrozes. Tinha tido alta! Claro, das dores falava ela, pois parece que mais ninguém as sentia do mesmo modo e eu tenho tendência para considerar que ela não estava a enganar-me.
Apesar das nossas visitas diárias, repito, nenhum familiar foi avisado nem da decisão nem da atitude nem, sequer, de qualquer premência por parte da instituição.
Como se poderá imaginar, foi alto o pé-de-vento que me vi obrigado a desencadear no Hospital para fazer regredir aquela estúpida, insensata e desumana «alta» – se calhar até lhe poderia chamar criminosa… – , pelo menos até que os filhos pudessem encontrar um lugar onde, mediante bom pagamento, pudéssemos acolher a nossa mãe com mínimos de dignidade.
Claro, o desfecho é o que imaginam: cerca de quinze dias depois, a minha mãe faleceu. Todo temos de ir, não é? E assim dizemos…
Ou aquela do meu cunhado, com uma hérnia inguinal absolutamente monstruosa e incapacitante que, nos últimos dois meses, se deslocou ao Hospital (por sinal, o mesmo) por seis vezes, queixando-se de dores pavorosas, com problemas graves no trânsito intestinal… e que sempre foi mandado para casa com os tais comprimidozecos. Chegou ao hospital de ambulância por não se poder locomover e regressou de ambulância, pois então. Não há, entretanto, quaisquer notícias de para quando a intervenção cirúrgica, que se diria imperiosa e urgente.
Houve até, um relatório a que tive acesso, onde um tipo qualquer que exerce Medicina escreveu, textualmente, no relatório para a Assistente Social: «o paciente queixa-se de dores ligeiras». A Assistente logo dispôs de um álibi para não fazer nada, que ele há muito quem precise mais.
(Se alguém duvidar, posso sempre ter o mau gosto de mostrar fotografias, quer da hérnia, quer do relatório)
Poderia contar vários outros casos vividos directamente. Mas vocês também os têm e conhecem outros, pois esta é a vulgar realidade com que todos deparámos em algum momento das nossas vidas.
Rede de cuidados paliativos? Pois, temos muita pena mas não há; está tudo cheio… Apoio social institucional aos idosos incapacitados? Era bom, era, mas ele há muito poucas vagas… Apoio domiciliário? Talvez, com jeitinho e capacidade de persuasão… e pagando, claro!
E como as pensões e reformas são a fartura que todos sabemos, paga o directamente interessado e pagam os filhos e, se for preciso, até pagam os netos, que o mercado não tem culpa de que as reformas andem pela hora da morte – se calhar, na verdadeira acepção da expressão.
E disponibilidade dos familiares para darem assistência? Ah, é difícil, porque a malta que ainda está ao activo tem uma vida muito competitiva e, se começa a não ser tão assídua por uma semana que seja, quando lá voltar já tem o lugar ocupado por algum interessado que estava em fila…
Neste contexto, discutirmos essa coisa tão difícil quanto é a eutanásia e, ainda por cima, discuti-la pela enésima vez? Eh, pá, deixem-se lá de merdas e comecem a dar algum bom uso aos impostos, taxas e taxinhas que pagamos porque somos cidadãos e assim devemos ser tratados, para além de se servirem deles para acudir aos pobrinhos dos banqueiros indigentes!
Caro Jorge,
Posso ser mas sucinto
para deixar dito
o que penso e sinto
Se mais de 70% de quem precisa de cuidados paliativos não tem acesso aos ditos
Se é mais barato despachar a gaja ou gajo do que lhe ministrar um cuidado continuado
Se ninguém fala do “testamento vital” (nem tu por sinal)
Então este alarido ou tem algo na maga… ou é conversa da tanga
Caro Rogério, antes de mais, grato pelo teu comentário.
O Testamento Vital, ou o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV) é um sistema de informação desenvolvido pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), que possibilita a recepção, registo, organização e actualização de toda a informação e documentação relativas ao documento de directivas antecipadas de vontade e à procuração de cuidados de saúde, para todos os cidadãos nacionais, estrangeiros e apátridas residentes em Portugal.
O RENTEV é suportado por uma base de dados de âmbito nacional, que centraliza e mantém actualizados os Testamentos Vitais (TV), garantindo a sua consulta aos cidadãos (e ao respectivo procurador de cuidados de saúde, caso exista), através do Portal do Utente, e aos médicos responsáveis pela prestação de cuidados de saúde através do Portal do Profissional. (in https://www.dgs.pt/paginas-de-sistema/saude-de-a-a-z/testamento-vital.aspx).
OK. E, daqui, partimos para onde? Mais um documento importante para o cidadão de que se conhece muito pouca divulgação e menos aplicação prática.
Entretanto, sim, estou de acordo contigo que sai mais barato deixar morrer o cidadão em casa do que tratar dele condignamente. Mas é exactamente aí que bate o meu ponto: para quando um «levantamento» nacional que obrigue os poderes instituídos a tratarem os seus concidadãos como tal e, já agora, pelo caminho, darem algum cumprimento ao estabelecido na Constituição Portuguesa? Porque não é só da eutanásia que devemos falar quando estamos a falar da saúde (ou da falta dela) dos idosos…
Imagina, como diria o John Lennon, um governo qualquer que nos anunciasse que tinha deixado ir um banco à falência porque o dinheiro investido numa rede de cuidados continuados e paliativos não lhe tinha deixado verbas disponíveis para acorrer àquela instituição. Isso é que ia ser bonito!…
Para mim, a questão de eutanásia é apenas um arbusto nesta imensa floresta, independentemente da carga emocional que, especificamente, possa acarretar. Por cada indivíduo que sinta necessidade de recorrer a este método extremo, haverá centenas de milhares que «apenas» precisam de prestação de cuidados elementares de saúde. E desta situação ouve-se um imenso silêncio.
Grande abraço.