sou de um tempo em que os dentes nos cresciam tortos
em que sabíamos de cor os nomes dos nossos mortos
e as janelas eram como as pessoas
com-portadas

sou de um tempo em que os dentes da ditadura
tinham a cor azul do lápis da censura
e alguns com sorte e de tamancos
iam se podiam sentar-se numa escola
nalguns bancos

iam de bibe alguns e algum deslize
tinha o prémio cruel de uma reguada
que lavrava na alma cicatrizes
e no futuro a amargura desalmada

sou de um tempo de haver carros de bois
e do irmos p’rà guerra só depois
de sabermos tanta vida por viver
e sabê-la ser assim desperdiçada

sou de um tempo de querer ter pai e mãe
e outras coisas mais simples que também
de tão simples até ninguém maltratavam

desse tempo eu sou mas por acaso reparando no calendário que eu trago
no aparelho modernaço onde afago o dia inteiro e sem o qual mal sobrevivo
eu reparo – observo – admiro
que eu sou do tempo todo aquele que eu vivo
e que estou de corpo e alma aqui contigo
à procura de outro tempo
meu amigo

– extracto de uma trilogia poética ainda em fase de conclusão, de minha autoria, Jorge Castro.