A minha anterior entrada sobre o conflito na faixa de Gaza motivou, sob a assinatura de ora et labora, um comentário que me suscita comentário. Porque a diversidade de opinião é fecunda, mas a confusão não é elemento pertinente no enredo, respondo aqui por desconhecimento de outro local onde o faça. De seguida, em itálico, o comentário que irei comentando:
sem dúvida que todo o martírio é inglório, injusto e reprovável… mas:
1º comentário: nem todo o martírio é inglório, menos ainda injusto e duvidosamente será reprovável. Que dizer, por mero exemplo, de uma conhecida e divulgada crucificação supostamente ocorrida vai para dois mil e tal anos?
Agora, se substituirmos o termo martírio pelo termo genocídio, também como mero exemplo, todos os adjectivos estarão adequados…
– o que dizer dos que se prestam ao martírio, desprezando a vida própria e alheia, acreditando mais noutra vida do que nesta?
2º comentário: O que dizer, realmente? Voltando ao mero exemplo, não morreu Cristo para nos salvar, desprezando a vida própria e alheia, acreditando mais noutra vida do que nesta? Não é sobre este postulado que se alicerça a civilização dita ocidental?
Talvez que por este culto de «transcendências» ande o ser humano tão arredado de assumir o seu próprio bem efémero terreno, buscando, uns, angélicas plumas e, outros, umas não sei quantas virgens nas delícias duvidosas do eterno.
– efectivamente é inviável, à LUZ da dignidade da vida humana, comparar quantitativamente a perda de vidas, mas esse argumento é exactamente no sentido oposto ao reivindicado no texto sob comentário: se alguém rapta um soldado, atira ou faz rebentar uma bomba ou desarvora uma grua de construção civil, alheando-se de quantos e de QUEM atinge, tem alguma legitimidade para exigir a quem se defende que limite os efeitos da sua defesa a um certo número – equivalente? proporcionado? mas se a refutação da comparação é pressuposto…!
3º comentário: Aqui manifesto a minha insuficiência argumentativa. Para mim, uma vida é uma vida e duas vidas são duas vidas. Com farda ou sem ela, com bomba ou sem ela, com grua ou sem ela. E não há, para mim, nenhuma lógica sustentável na contabilidade desiquilibrada, que favorece sempre os «bons» em detrimento dos «maus», conforme os ditames do poder vigente.
«Legitimidade… a quem se defende»? Sendo que quem se «defende» é, no texto de ora et labora, Israel. Outra lógica pouco pertinente, pois neste trágico ping-pong ninguém estará muito seguro de quem defende nem de quem ataca… E nem é preciso recuar muito na História para depararmos com esta incógnita.
Por mim, uma vez mais, limito-me a constatar que, de um lado, se encontra a quarta maior potência militar do mundo, apoiada pela maior potência militar do mundo. E do outro?
– independentemente de anedotas e outros arremessos, insusceptíveis de fundamentar uma explicação inatacável de factos controversos desde há milénios, vejamos o que se está na prática aqui a defender: de um lado, as Mães, choram quando os Filhos são incorporados na reserva militar; de outro, há Mães que exprimem exaltação e júbilo por os Filhos terem a oportunidade do martírio assassinando outros seres humanos… e que pura e simplesmente advogam e praticam o extermínio dos povos ocidentais que consideram “cães infiéis”, em que também os portugueses simpatizantes do Hamas se integram – ou julgam que são imunes a rockets? usam algum protector especial para o efeito? esperam sinceramente clemência do fanatismo?
4º comentário: Longe de mim ter veleidades de – e cito – «fundamentar uma explicação inatacável de factos controversos». Por si mesma, essa fundamentação se desmoronaria na contradição dos termos…
Mas, meu caro ora et labora, essa das mães que choram e das mães que exaltam, convenhamos que é de um primarismo irritante que não lembrava ao Diabo nem a nenhum dos seus acólitos! Misturar o choro de uma mãe, em qualquer quadrante do planeta, perante a morte de um filho (ou de uma filha) com qualquer tipo de fanatismo é coisa que me provoca uma urticária danada.
Sabe que nunca lidei muito bem com aquela história de Abraão estar decidido a sacrificar o filho – ou fosse, até, lá o que fosse – para dar bom cumprimento a uma ordem divina. Afinal, se virmos bem, não há tão grande disparidade nos conceitos de fanatismo extremista, passe a redundância, ou na mistura das culturas…
Entretanto, pelo caminho interessa acautelar que o desespero de quem não tem nada a perder e se encontra acuado como cão raivoso (e, ainda para mais, infiel) pode perturbar o raciocínio a qualquer um.
Já o epíteto de «cães infiéis» será seguramente uma herança do tempo das santas cruzadas, onde cada um puxava a brasa à sua sardinha… Então, como agora.
5º comentário: Não sou, por acaso, dos portugueses simpatizantes do Hamas que refere. Nem de perto, nem de longe. Mas uma coisa, entre muitas outras, me causa alguma estranheza: porque será que nunca temos conhecimento dos tremendos e terríficos danos que os seus milhares de rockets lançados sobre território israelita ocasionam? Será por pudor?
quanto a lamentar a perda de vidas humanas estamos de acordo, censurando a violência e todo o mal
6º comentário: A grande questão residirá aqui, na verdade. Lamentavelmente, as crianças que vejo abatidas nesta guerra sem quartel – já para não falar na restante população civil que, já se sabe, é sempre constituída por presuntivos terroristas, de tez escura e barba hirsuta – não dispõem de qualquer «protector especial» o que nos conduz, inexoravelmente, ao episódio bíblico do massacre dos inocentes.
Conhece, decerto. Pois é tão só a essa barbárie que o meu pobre texto se refere. A mais nada.
Poderia discorrer sobre os interesses geo-estratégicos das grandes potências na região. Dos disparates ali cometidos pelas consciências ocidentais pesadas com o holocausto nazi. Mas não. Falo, apenas, da miséria humana. E continuo a considerar, muito convictamente, que, com a manutenção deste conflito, é a Humanidade que está a perder.