Alguém me disse, recentemente, que à sua consciência libertária cada vez lhe assenta melhor, como salvaguarda de sanidades mentais, o epíteto de «mau feitio». Após ligeira maturação da ideia, inclino-me, de alma e coração, para a tese…

Alguns motivos:
  • Os «analistas» económicos instalados, sejam eles institucionais ou meros comentadores, levaram anos a convencer-nos dos benefícios miraculosos da «economia de mercado», como anunciado estadio superior do capitalismo. Até o próprio termo capitalismo veio a ser expressão quase banida, como exorcismo aflito das – segundo eles anunciavam – caducas fórmulas do velho Marx.
  • O «mercado», ainda para mais o «financeiro» (que um mal nunca vem só), autorregulamentar-se-ia de modo tão espectacular e benevolente, que o mundo evoluiria na senda do «progresso» inexorável para toda a Humanidade. Esta argumentação sempre foi vendida, com maior ou menor jeito, apoiada no apelo à fé cega em conceitos de probidade e de honestidade sobre entidades por definição sem cara e sem nome. No clássico conto do vigário, este, pelo menos, dá a cara. Também não se referia para quando tal paraíso na Terra. Talvez amanhã, talvez daqui a mil anos, mas evoluiria! O que se pede ao contribuinte é apenas isso: que tenha fé.
  • Claro que o modelo de evolução, podendo parecer importante a néscios como eu, para os gurus que transportam a verdade na albarda das suas labitas não é e, portanto, nem é preciso perdermos tempo com isso. O modelo abençoado pelo capital é o melhor para todos, por definição intestina… e está tudo dito. A modos que um desidério divino, um dogma que, enquanto tal, nem é questionável.
  • Pelo caminho, vamos evoluindo, de facto, mas no aumento da fome no mundo, no escandaloso agravamento do fosso entre os muito ricos e os muito pobres, no mais descabelado desregramento do trabalho, com subversão de elementares leis dos direitos humanos… Pelo caminho ficam termos esvaziados de sentido, como a solidariedade, dos quais só nos ocorre lembrar quando a desgraça nos bate à porta.

Tais foram e são algumas das virtudes deste extraordinário capitalismo selvagem, que tomou o freio nos dentes e ninguém parece conseguir segurar.

  • Estas «lógicas», de que todos os governos foram cúmplices, criaram e continuam a criar, de facto, um mundo mais desigual, mais injusto, mais desregulado, onde a vida do ser humano deixou de ser sequer um mero número, para passar a ser pouco mais do que um estorvo. Reforçou-se, entretanto, na cosmética o que se perdeu de verticalidade na coluna dorsal.
  • Caso típico e digno de estudo são os vencimentos e espantosas benesses a que os «gestores» deste «mercado» se auto-atribuíram que colhem os mais extraordinariamente hipócritas comentários dos tais «analistas» avulso e gurus de pacotilha, que parecem abismar-se agora com o que estão fartos de saber, colhendo eles, presumivelmente, as migalhas do prato da fartura.
  • Por trás deles, mexendo os cordelinhos destes ocasionais testas-de-ferro do sistema, os grandes interesses económicos constituem-se cada vez mais como entidades miríficas que, pelo andar da carruagem, mais dia menos dia e com a massificação da inteligência humana para o que tanto se empenham, vêm a assumir foros de divindades, mais ou menos extra-terrestres e intocáveis, evoluindo em voos de tão imensa altitude que o vulgar mortal nem os lobriga. Apenas sofre os efeitos dos seus cósmicos apetites…
Ou, então, se calhar não. Todos estes tipos têm cara, a começar pelos governantes que funcionam como seus homens-de-mão, numa espécie de esquema pan-mafioso, em que tudo funciona através de valores entendidos e estratégias globalmente arquitectadas.
Há dúvidas?… Então, vejamos: quanto dinheiro seria necessário e quanto tempo levaria até se chegar a uma decisão concertada para acabar com a fome no mundo? Em contrapartida, quanto foi disponibilizado e em quanto tempo pelos governos do mundo para socorrer os artistas da «alta finança», esbracejando nas suas falências anunciadas?

Alguém quer comparar os dois pesos e as duas medidas? Então, e as duas velocidades? Alguém duvida deste imenso concerto global do «venha a nós o vosso reino», numa escala que deixa a dízima a perder de vista? A actual «crise» aí está para o provar…