Bem me avisam os amigos mais chegados de que isto de «ir lá fora» é manobra de alto risco… Não tanto porque os perigos espreitem ao virar de cada esquina, mas porque o risco corrido, esse sim altamente elevado, é o de embasbacar, perturbando-se-nos o entendimento, com graus de intensidade que podem atingir a fatalidade do AVC.

O passeio foi pelo norte e nordeste de Itália.

Milão, Como, Belaggio, Pádua, Verona, Vicenza, Veneza, Murano, Burano… os lagos de Como, de Garda, o Maggiore, o Lugano… o Castelo Sforzesco, as Catedrais, a Pinacoteca di Brera, o Teatro Olímpico… criaram em mim uma «amálgama de beleza», uma perplexidade pela capacidade – afinal humana! – de tudo se nos apresentar limpo, calmo e cuidado, apesar da enorme quantidade de pessoas que fruíam aqueles espaços, que se me entaramela o discernimento e a língua só de os mencionar.

Invade-me uma mistura de inveja do que lá vi misturada a uma angústia com o que por cá vejo, que nem sei se lhe chame provincianismo ou objectividade. Estou entranhadamente amarrado a este Portugal onde me fiz, mas onde o incomensurável das tarefas a levar a cabo para nos aproximarmos, comportamentalmente, desta Europa assusta.

O património cuidado, a suavidade, a um tempo cautelosa mas fruidora, com que cada um usufrui dele, a tranquilidade e apaziguamento que isso nos traz, em plena época de férias de Verão, com a pressão humana inevitável com que deparei, ainda mais ajudou ao espantamento.

Uma feira na praça principal é desmontada em meia-hora. A limpeza da praça está feita na meia-hora seguinte! Eu assisti e acredito que tal não tenha sido feito apenas para me convencer.

Há flores por toda a parte, canteiros que alguém cuida para nosso deleite – e isso, para além da cintilante beleza a envolver-nos, também significa emprego.

Podemos imaginar que o dinheiro que por ali flui – aparentemente, a rodos – não seja tão imaculado quanto a paisagem. Mas os euros, lá como por cá e em sintonia com as pessoas – que todos somos feitos da mesma massa – são obtidos com as mesmas lógicas. O que difere, então? Este é um busílis que se nos impõe, a nós, portugueses, ainda antes de tentarmos alterar o concerto do mundo.

Nem o calor sufocante ou as dezenas (centenas?) de milhares de pessoas que cirandavam por Veneza conseguiram estragar o efeito geral. Há uma pressa sem atropelos, uma presença física sem gritos… E, logo, em Itália, numa realidade que se mostra já tão distante dos filmes do realismo italiano!

Encargos do passeio? Perfeitamente comportáveis para um «classe média portuga» que seja capaz de combater o impulso de entrar em grandes restaurantes (aliás, tal como por cá). Trânsito? Ainda que de cumprimento de regras mais do que discutível, sempre perfeitamente fluido.

Garantiram-me serem as auto-estradas caríssimas. Mentira, se as compararmos às nossas. O alojamento talvez seja mais caro, mas nada de transcendente. Em qualquer caso, a pequena amostra que refiro não poderá servir de bitola nem de dictat. E nem estou a comparar com o Algarve!

Nos meios urbanos, a bicicleta impera, com direitos de cidadania sobre outros transportes privados. Da matrona gorda, vinda das compras, à velhinha seca e espevitada, passando pela ragazza, belíssima, de salto altíssimo e roupagem de alta costura, tudo pedala, minha gente!

Também o acolhimento foi positivo, com a ressalva de que o pedido de informações na rua geralmente não é aconselhável, por termos ficado com a experiência de que, oito em cada dez vezes, a resposta leva-nos para os antípodas do nosso destino… Ou, então, o nosso italiano é bem pior do que pensávamos.


A propósito, colhi também a experiência de que, falando português, a receptividade é muito mais favorável do que buscar o entendimento em inglês, por exemplo. E isso foi, repetidamente, muito confortável.

Ficou-me, por tudo isto, uma sensação muito próxima daquela que colhi, há algum tempo, nos Açores e que é esta: as pessoas aprenderam a cuidar bem daquilo que as rodeia e que as enforma, antes de tudo, para seu próprio usufruto. Há quem lhe chame autoestima. Os turistas e o seu enlevo vêm por arrasto e consequência lógica.

Talvez pareça exagero mas não vi, em todas as zonas históricas que calcorreei a pé, uma construção que necessitada de obras elas não estivessem a ser feitas. Com taipais civilizados e, até, estéticos; com atenções para uma perturbação mínima da circulação pedonal. Será que, em Itália, não há (como cá) conflitos de heranças ou atropelos de poderes?…

E os simpáticos eléctricos, em Milão? Cruzam a cidade em todas as direcções. Trazem neles imagens do seu passado, enquanto transportam as pessoas para o seu futuro. O que terá levado as nossas maiores cidades a, praticamente, abandonarem este popular meio de transporte?

Depois, por três euros, o turista adquire um bilhete que lhe permite viajar, durante 24 horas, em todos os meios de transporte urbanos, podendo percorrer a urbe em todos os sentidos e mais um, enganar-se, voltar a enganar-se e ir dar sempre aonde pretende, deixando o carro num estacionamento que custa 5 euros por dia… menos de metade do que eu pago em Lisboa!

Enfim, gostei. Muito. E se me der, hei-de voltar. Não é esse o grande desidério de quem zela pelo turismo, o regresso do turista agradado?

E a oferta, meus senhores, é para as massas. A qualidade é fruída por todos e por toda a parte, obviamente em sucessivos patamares de encargos em função das posses, ao contrário do que propõem os nossos mentecaptos governantes com a sua monomaníaca paranóia pelos campos de golfe.

É, decerto, esta uma opinião subjectiva. Mas é a minha e colhi-a sem ser por interposta pessoa. Há, na verdade, por cá muito a fazer e cada vez é mais tarde para meter mãos à obra.

– fotografias de Jorge Castro