Eu lamento muito mas, na sociedade em que vivemos, tenho tendência a desconfiar daquilo que estranhos me oferecem. Creio que isto terá algo a ver com receios atávicos, que as nossas mãezinhas ajudam a agravar nas nossas tenras idades…
Vem isto a propósito de um artigo de opinião, colhido num desses jornais “oferecidos” que pululam por Lisboa, no caso o “Metro”, de segunda-feira, dia 11 de Julho de 2005, cujo autor, pela foto em que se apresenta, se trata de um garboso jovem, de seu nome Rui Ramos e, conforme tudo me leva a crer pelo que posso ver no rodapé do artigo, historiador. E cito: “Rui Ramos é historiador”. Na minha magnificente ignorância, devo reconhecer que não o conheço, pelo que apresento desde já as minhas desculpas.
Na crónica, este plumitivo – falando de dois recentes filmes, quase como quem não quer a coisa – produz um arrazoado que poderá sintetizar-se, e cito de novo, no seguinte deslumbramento: “Guevara era um revolucionário, tal como Hitler. Ambos odiavam a ‘civilização liberal e capitalista’. Julgando ter as certezas da ciência do seu lado, propuseram-se atingir uma sociedade perfeita, eliminando o que um deles chamava ‘classes exploradoras’, e o outro ‘raças inferiores’.” (as aspas ‘interiores’ são do RR).
E compara, justiceiro, o genocídio levado a cabo por Hitler com “as centenas de pessoas” que Guevara terá “mandado matar” em Cuba.
Apeteceu-me desancar o miúdo. Num ensaio, entenda-se! E literário, apesar da porrada vir a calhar! Mas está tanto calor que se me desvaneceu a intenção… E ainda teria o funesto efeito de que viessem a mimosear de caceteiro.
Poderia – sei lá – lembrar a este amigo que Hitler, acuado no seu bunker, após ter incendiado o mundo, desfechou um tiro na cabeça, louco e cobarde, enquanto Guevara, farto das “mordomias cubanas” (e as aspas aqui são minhas), voltou à luta na Bolívia, onde morreu em combate (o que, por acaso e en passant, não me recordo que o Hitler tivesse feito nalgum momento do seu “Kampf”)… Daquela morte em combate não terá estado alheada a mãozinha americana, a bem da ordem mundial liberal american way, mas isto são meandros por esclarecer dos muitos e profundos mistérios em que os nossos tempos são pródigos e que, também en passant, o nosso ilustre historiador não terá tempo ou oportunidade para ajudar a desvendar.
Poderia – se a ousadia da análise apressada me fosse desculpada pelo ilustre analista – lembrar a este amigo que Guevara pretendia alegadamente lutar pelo bem da imensa maioria da Humanidade contra uma ínfima minoria exploradora, enquanto Hitler não tencionava deixar de matar gente enquanto não fosse ele o único sobrevivo e “puro”, ainda por cima.
Poderia lembrar a este amigo, auto-intitulado historiador (pelo que deve sê-lo, seguramente…) que a circunstância é determinante na análise do processo histórico, pelo que comparações deste calibre são grosseiras, erróneas e, geralmente – não resisto ao galicismo – engajadas.
Poderia lembrar a este amigo que comparar Gengis Khan a Jesus Cristo, Marilyn Monroe à Madre Teresa, ou o guarda-nocturno da minha rua (que até dá porrada na mulher) ao Stalin (ou Estaline, como queiram…) poderá ter uma laracha do caraças e até dar alguma pica, mas não trará nada de novo ao mundo…
Mas, de súbito, eis que ao ouvir num telejornal de hoje uma entrevista ao nosso bem-amado Durão Barroso, se fez luz neste meu pobre espírito obscurecido pela poluição urbana: a propósito das bombas terroristas e da insegurança que hoje se vive, Durão tranquiliza o povo comparando as vítimas dos atentados às vítimas dos acidentes de viação, em Portugal. Afinal, tudo são mortes, não são? Lá teremos que nos habituar à ideia… É o progresso!
E como a estupidez é como as cerejas, lembrei-me logo daquele postulado do Bush, segundo o qual, se derrubarmos todas as árvores, deixaremos de ter problemas com incêndios…
Pois é… Isto tem tudo a ver com os conceitos e a arte de bem (mal) se reescrever a História, quiçá a troco de um prato de lentilhas. Vai a ver-se e o RR é historiador porque nos anda a contar historinhas.
Por estas “análises” e por outras é que quando morrem quarenta civis no Iraque, com uma bomba… lá foram mais quarenta. Enquanto que quarenta ingleses mortos no metro, com outra bomba, é um escândalo do caraças! É a este tipo de anestesias imbecilóides (liberais?…) que nos conduzem estas análises de historiadores sem pinta de sangue.
Agora, que ninguém me tira da cabeça que estes gajos andam todos engajados, isso é que não tira… E hei-de finar-me assim, velho e quezilento.
Também sinto já pena até dos filhos ou outros educandos deste nosso RR o qual, num sumário teclar, com arte e graça, tal fada-madrinha dos novos tempos, e a bem (podemos imaginar…) da desobstrução das mentes, equipara um ícone da luta inconformada pela liberdade a um demente megalómano a quem os poderes económicos então vigentes (e que supostamente Guevara combateu) guindaram ao poder.
“Personalizar” assim a História é, por si só, uma manobra tosca em que um historiador digno desse nome não deveria incorrer com tanto despudor. Esvaziá-la da envolvência é estultícia que nem a mente mais ingénua poderá apadrinhar. Mas é, também, uma fatalidade nacional aparecerem tantos expertos destes, tão iluminados, em tantas áreas deste país enegrecido por tanta fumaça.
(Agora, brincadeiras à parte, alguém sabe dizer-me quem é o Rui Ramos? É que já pedi informações lá para a Sierra Maestra e dizem-me que também não o conhecem…)
Nota de 12 de Julho – Já sei quem é o RR, mas não digo. Se quiserem, procurem, como eu fiz, que tudo se encontra. Não sei se terá algo a ver com mexilhões, pois a verdade é que a sua crónica mexeu comigo.