Carta aberta e ingénua à Excelentíssima Senhora Dona Júlia Pinheiro,

Pronto! Parece que lá acabou a cegada da tua quintinha… Arrecadados que foram os tostanitos com que irás comprar os melões do teu contentamento, deixa-me perguntar-te uma coisa:

– Perpassa-te pelo bestunto a noção de que os portugueses, em geral, ou a Dona Efigénia, de Fornos de Algodres, em particular, ficaram cultural ou humanamente mais enriquecidos com o regabofe de que ousaste ser o emblema mediático?

Entretenimento cru? Ó mulher, filmasses uma matança do porco ou o esquartejar de uma vitela no matadouro. Vocês não dizem que o povo quer ver é sangue?

Dir-me-ás, claro, que se não fosses tu outra seria. Clarividente asserção. Mas se não fosse o Hitler? Outro seria? Ou, até, o nosso António das botas? Outro seria?… Ocorre-me, até, uma elementar antítese: e se não fosse aquela Catarina Eufémia? Outra seria?

Estas filosofices sobre o acaso e a necessidade levar-nos-iam muito longe. Porventura, em ti terá preponderância a necessidade, dando-se de barato o acaso e, por conceitos bastardamente democráticos, a cada um a sua escolha.

Até a tua camarada, Catarina também, mas outra, a Furtado resolveu mimosear-nos a existência com a exibição de uns putos, betos e desatinados, fazendo momices semi-amestradas num circo piroso e, quiçá, configurando a sacrossanta figura da exploração de mão-de-obra infantil sem que se vislumbre o que é que tal patetice trará de bom ao mundo, para além do puro desperdício de tempo de antena, bajulice aos progenitores babados e aplauso de mentecaptos. Ah, ele há um programa igual, americano e de muito êxito? Pois, eu logo vi…

Abismo-me eu, pobre pagador de impostos sem projecção mediática – logo, sem existência real… – com estas nossas divas e a sua militância em provar que o mundo é quadrado, por pura ingenuidade minha, é evidente. Mas, continuando ingénuo, que bonito seria se vocês assumissem que o que vos faz correr é o dinheirinho, para que ninguém se iludisse com as vossas patéticas piruetas.

Era assim, chegavas ali e declaravas, à abertura de cada programinha: “- Bom povo português! Vou apresentar-vos um programa imbecil e imbecilizante, perverso e pervertido, aparentemente inútil e, portanto, de desígnios obscuros mas é só porque vou arrecadar UMA PIPA DE MASSA, pessoal!!!! E O CACAU É BOM CU’MÒ MILHO e eu gosto!!!!…”

E o bom povo português, como sempre, sorriria condescendente, abanaria a cabeça e o mais certo seria que uns ficassem para ver e outros não, como, aliás, é hábito.

Mas não achas que tu terias atingido um mais alto estadio na arte da comunicação? Porque é sempre bom saber o que faz correr o soldado, quando parte para a batalha. Dá-lhe elevação e, às vezes, quase nos convence que a causa justifica o meio. É como a prostituta… ainda que, nos tempos que correm, estes conceitos andem um pouco baralhados, com tantos dinheiros à mistura. Também aqui prevalecem conceitos de necessidade, dir-se-ia.

Porém, a minha ética tortuosa não pode deixar de fazer uma montagem terrível entre aquilo para que tu te vendes e a tragédia imensa que assolou e assola os povos atingidos pelo maremoto. Se calhar foi azar esta coincidência temporal. Se eu fosse a ti, pegava numa parte significativa desse dinheirinho que tanto te deve ter custado a ganhar quanto a nós a suportar, dava uma conferência de imprensa e anunciava a dádiva ao mundo e – quem sabe? – seria tua a próxima Ordem do Infante.

Talvez a tua acção servisse assim para alguma coisa para além do estrito acto de venda de carne humana que me fica. É que nunca mais poderei olhar para ti sem te ver criticando um burro por estar a comer excrementos de um peru. Se calhar, até era uma metáfora e aquele burro somos nós todos…