Do Portugal nauseante e/ou desconchavado com que temos sido brindados pelos poderes instituídos e analistas avulsos nos últimos dias, resguardei os Sete Mares através do refúgio em amores alheios…
De volta ao pântano, surgiu-me o poema que a seguir vos deixo. Permitam-me uma sugestão: tentem dizê-lo, em voz alta, imaginando em pano de fundo o som trepidante de um comboio que vos transporta e que funcione como secção rítmica das palavras ditas. Depois, falem-me do resultado.

Pontes e ruas e gentes e casas

Tal um formigueiro sem formiga de asa

E carros e vasos

E um viaduto

O triste reduto dos escaravelhos

E velhos e novos

E novos e velhos

Lavados ou sujos e tão mal usados

E pardos e cardos

E montes de entulho

Magotes de pobres e tantos engulhos

E bairros da lata e cacos e trapos

E tropas de trastes maltratam as putas

E os vira-latas tão escanzelados

Sozinhos

Carentes

Uivantes ao vento e a tudo o que passa

P’ra lá de trapeiras e de águas-furtadas

Compasso de tempo

Que o tempo ultrapassa

Dispersos os cães no tempo adverso

Passagem de nível cheia de fumaça

Que é das castanhas e desta desgraça

Sem graça nenhuma

Sequer golpe de asa

Sem arte tamanha que arda na febre

E a todos abrase

E pontes e ruas e gentes e casas

E as flores morrentes e o rio só vasa

E o arvoredo já tão degradado

E a sombra ingente do prédio do lado

E o surto pungente de gente infectada

De sida

De gripe

E da hepatite A – B – C ou D

Por tudo e por nada

E o empedrado

Pedra na estrada

E sobe que sobe

Corrente que corre

Que já nem descobre Luísa que morre

Subindo a calçada

De pontes e ruas e gentes e casas

Colhendo amarguras

Vidas desvairadas

E o odor a lixo

Fedor desalmado desse desperdício

Recém-triturado

Que já lhes invade o chão e o telhado

Os dentes e as mãos e os olhos e o pão

E não sobra nada

Não lhes sobra nada

Para além do bulício da grande cidade

De pontes e ruas e gentes e casas

Onde falta tudo

Sobra quase nada

Talvez só lhe fique um gesto ou um tique

Um encolher de ombros

Um grito

Um ataque

De riso ou de fúria

De espanto ou de pranto

Maleita de amar ou simples quebranto

Mal seja chegado à nova estação

Por entre um travão e um solavanco

E essa estação ser só de partidas

Por onde se inventam novas alvoradas

Soltas num suspiro

Num cais de chegadas.


– Jorge Castro