Não sei se será por excessos de futebol ou de baixa política, mas ando com a sensação de que estamos todos a ficar mais burros. Burros, isso mesmo! Mas nada que nos assemelhe aos mui dignos representantes da raça equídea. Nada disso! Burros na acepção do calão que é sinónimo de ignorantes, obtusos e obstinados…
Vem isto a propósito de, no escasso espaço de duas semanas, ter assistido por duas vezes ao pré-pânico de grande parte dos meus companheiros de areal, perante o aparecimento, nas salsas ondas onde banhávamos as banhitas, de uma inofensiva alforreca. Ainda se fosse uma caravela portuguesa… Mas não, tratava-se, num e noutro caso, de uma alforrecazita de Lineu que o destino e a maré aproximaram muito mais da praia do que ela desejaria, se tivesse mais mão em si… e todos sabemos que as alforrecas, tendo vários braços, não têm mão alguma.
Num e noutro caso, também, um intrépido banhista, armado de uma pazita de plástico ou de um balde de fazer castelos na areia, trucidou e desmembrou o inofensivo e indefeso animal, perante o gáudio das massas, como se de algum feroz tubarão (dos filmes) se tratasse.
Pois é… até me assaltou um relampejo de versalhada, perante tão ingente manifestação de… sei lá bem de quê, eu…

a alforreca

na praia
pela manhã
um intrépido banhista
solidário e de cueca
viu dar à costa dourada
coisa que raro se avista:
o pavor de uma alforreca!

não fosse o demo tecê-las
em matreirices de algoz
muniu-se
pronto
de um balde
atacando a fera atroz
que ameaça o arrabalde

alertou novos e velhos
e entrou pelo mar adentro
com a coragem dos bravos
– já lhe chegando aos joelhos
a façanha
o espavento
a água e os seus conselhos –
pois não daria dois avos
ou coisa mais ordinária
por perna que se queimara
com a cruel alimária

e a turba amontoada
aplaudindo a bravura
da intrépida criatura
riu dessa coisa horrorosa
ser de pronto chacinada
coitada
gelatinosa
a golpes vis
à pazada
e em cruel desventura
ser na areia amortalhada

trouxemos do outro mundo
a trabuco
e mil façanhas
coisas tais como o jindungo
p’ra nos queimar as entranhas
e agora
em praia amena
temos pavor de um bichinho

que nos queime a bela perna
povo bravo que deu brado
nas praias do mundo todo
mesmo sendo meia-leca
votado assim
deste modo
de balde em riste e com medo
à chacina da alforreca…