jamais consegui voar e bem tenho eu tentado
tento voar quando sonho mas nalgum sonho acordado
entre um copo de medronho e algum serão bem passado
quando chega a primavera – é um dos sonhos sonhado
ao ver voar abelhões e eu para aqui sentado
quando o inverno é uma fera e se fica enregelado
olhando voar o fumo ou um papel mal queimado
quando a notícia me traz um futuro amordaçado
ou o presente nos faz ficar assim ou assado
indiferentes como aquele caminhando ao nosso lado
a voar só na aparência estando afinal parado
pois é o mundo que roda embalando o nosso fado
agora então – voar como? – assim para aqui confinado
com as asas sabotadas e o viver amortalhado
correntes na liberdade e futuro congelado
num medo frio de fome roendo um pão estragado

jamais consegui voar e bem tenho eu tentado
da passarola ao avião ou noutro objecto alado
mesmo aí de pés no chão não voo sou só levado

eis então que me redime a palavra que buscava
e largo as rimas em -ado
e voo como sonhava.

  • Jorge Castro
    29 de Março de 2021