Se há momentos em que me assalta aquela incómoda e desconfortável vergonha pela prática de actos por parte de terceiros, ontem, dia 1 de Maio de 2012 foi um desses dias, ao ter conhecimento da lamentável atitude «promocional» da cadeia de supermercados Pingo Doce.
Não pelo lastimável espectáculo proporcionado pelo rebanho despolitizado, egoísta e/ou realmente carenciado (que também os há-de haver e em quantidade), pois esses são os habitantes do «Portugal profundo» que existe em tantos de nós, as «maiorias silenciosas», ordeiras, trabalhadeiras mas oportunistas ou «sobreviventes», que vendem, entretanto, a alma ao diabo por um prato de lentilhas… desde que sejam elas a comê-lo. Aqueles que nos tempos salazarentos afirmavam, com uma espécie de corajosa covardia, que a política deles era o trabalho e que se davam muito bem com isso.
Os mesmos que, hoje, vão dizendo a mesma coisa, escudados no argumento falacioso de que o que o país precisa é de «trabalho», para sair da «crise», mesmo que seja trabalho escravo, indigno ou ilegítimo.
Mas pela atitude da corja empresarial deste tipo de calibre – pois creio bem que existe outro tipo de empresários –, mais a cáfila de assessorias que os ilumina, que é capaz de abandalhar – com a conivência do rebanho acima, de quem interpretaram bem o sentir – o dia que deve ser o mais caro para quem tenha do trabalho a devida noção do que isso representa para a dignidade maior do ser humano na comunidade em que se insere.
Cinquenta por cento de desconto em compras acima de cem euros, entretanto, coloca-nos questões elementares, a responder com urgência por quem chefia o Estado da nação:
– Se estes descontos puderam fazer-se sem prejuízo, então o lucro nas transacções habituais é abusivo, desonesto e merecedor de punição pública;
– Se, pelo contrário, estivemos em presença de «dumping», com venda de produtos abaixo do preço de custo, então a atitude cai sob a alçada da lei vigente e impõe-se célere e conclusiva bordoada nos espertalhóides que a promoveram, através de mera aplicação legal – que a ASAE sirva, enfim, para alguma coisa, na defesa efectiva dos interesses do cidadão;
Entretanto, convém não perdermos de vista que, num ou noutro caso, o extraordinário fluxo financeiro que correu pelas caixas do Pingo Doce estará hoje a ser encaminhado para a sede do grupo domiciliada no estrangeiro, com manifesto e consabido prejuízo para a economia nacional.
Ora, isto, assim configurado, permite-nos dizer aos distintos governantes eleitos que nos calharam em sorte que podem limpar as mãos à parede com a autorização concedida a estes grandes grupos de interesses para abrirem portas em dia feriado de alcance mundial. Para além de se ter promovido uma profunda clivagem entre os cidadãos civicamente conscientes e os consumismo-dependentes.
Claro que, neste caso, os nossos gurus de serviço não se perturbam com a imagem que transmitimos aos «mercados». Afinal, a malta até ainda tem uns troquitos guardados para alinhar nestes desvarios. E isso é o que os «mercados» querem saber… e o resto é conversa.
Falta agora que o senhor ministro das Finanças faça um levantamento e retire rendimentos de inserção social e/ou isenções de pagamento de taxas moderadoras àqueles que tenham acorrido, ontem, às catedrais do consumo. É que no aproveitar é que vai o ganho e, assim como assim, lá irão pagar outra vez alguns mais dos mesmos…
Também como alguém disse, o acto teve outro grande mérito: serviu como ensaio geral para quando as grandes superfícies forem assaltadas pela multidão dos descamisados com fome. Mas, claro, nessa fase sem passarem pelas caixas.