Num desses acessos que, a cada passo, me impelem para o planalto nordestino transmontano, lá fui, com família e de armas e bagagens, em busca dos diferentes horizontes que me limpam a alma de permanências citadinas demasiado prolongadas.
Desta feita, com o interesse acrescido de levar comigo o meu filho, cultivando esse incerto desidério de passar testemunho… 
Pelo caminho, a primeira paragem para almoçar: Sortelha, ali próximo do quadrante que alguém chamou País das Pedras, na Beira Alta.

Aldeia de pedras e ancestralidades. Na sua zona histórica, belíssima, e que tem vindo a ser recuperada com a sacrossanta ajuda de dinheiros comunitários, tudo se conjuga para nos tornar viva a sensação de um mergulho no tempo, em que as regras conhecidas se tenham subvertido.
A palavra distância parece ganhar outro significado ao atentarmos nos sucessivos planos que a vista abarca.   
O tempo soalheiro deste Junho e o meio-dia parecem emprestar outro vigor às cores que nos rodeiam. Mas não consigo furtar-me a esta sensação de fantasmagoria, pois as ruas, desertas de gente, parecem, apenas, conter os espíritos que nos espreitam por trás das cortinas das janelas…  
Uma escassa dezena de turistas, duas lojas de artesanato, um restaurante – D. Sancho, onde uma perdiz à moda da casa regada por um excelente vinho tinto da Quinta dos Termos, por si sós justificariam o passeio –  e um bar… e, de habitantes, as duas mãos são excessivas para os contar, pelo menos à vista desarmada.
Não sei o que é preciso fazer para alterar este estado de coisas. Mas parece-me imperioso que algo tenha de ser feito no sentido de prender, de forma sustentada, as pessoas à terra, pois, em caso contrário, o deserto intensifica-se, ainda que recheado de construções belamente reconstruídas. Mas sem o seu sentido, pois casas sem gente, pouco a pouco, vão deixando de ser casas.
O turista usufrui-as, talvez. Mas é preciso que alguém as habite e que cada sítio, cada povoação seja isso mesmo: um povoado… e não o despovoado a que assistimos. 
  
País de pedras, duras e frias, redondas e quentes, ao gosto e feição que lhes formos dando. Ara sacrificial, posto de atalaia, local de oração e convocação espiritual ou derradeira guarida, para tanto servem as pedras de aparência imorredoira, na paisagem, a um mesmo tempo, agrestes e companheiras…   
As pedras que fazemos nosso prolongamento de vida, entretecendo-as a nosso bel-prazer com a estrutura da terra, para nos darem serventia e assim, cúmplices afectuosas, nos proporcionarem conforto e resguardo.
E elas lá ficam. Ordenadas, rigorosas, sempre prontas a receber-nos, estranhando-nos a ausência e o desperdício. Quase se lhes pode adivinhar um adeus inconformado e fica-nos alguma penosidade ao olhar, uma última vez, para o casario sem vivalma. 
Próximo destino, já a meio da tarde, Torre de Moncorvo. Breve destino, apenas para matar a sede e aproveitar a viagem. Era dia de procissão. As ruas receberam-nos cheias de flores ainda frescas a cobrirem as lages da calçada. 
Aqui, felizmente, viam-se pessoas. Fosse da procissão, do labor ou do descanso diário, não interessa. As pedras e as casas tinham outra vida, o que parece sentir-se mesmo à flor da pele.  
As ambiências mantêm a sua personalidade, apesar de grassar ali como por Portugal inteiro uma avassaladora mania de nos descaracterizarmos, espalhando Reboleiras por tudo quanto é considerado zona habitacional, sem que as forças autárquicas tenham o golpe de asa de impor regras que, incidindo em todo o espaço urbano, assegurem aquilo a que eu chamaria uma «matriz identitária» à globalidade desse espaço. 
Sem concessões de qualquer espécie, ainda que sem descurar as novidades que a civilização vai trazendo, de confortos e comodidades e que nos são tão apelativas. 
Mas uma coisa não impede a outra, se – como em tudo – prevalecerem o bom-senso, aliado ao amor à terra e apoiado na modernidade, gerando lógicas em que estas duas últimas componentes se encontram e frutificam.      
Por fim, o nosso objectivo: Mirando da Douro. Quase seiscentos quilómetros percorridos, desde Lisboa, somos recebidos pelo casal mirandês na Praça D. João III, já noite cerrada, dirigidos àquele que é sempre o meu primeiro poiso, quando lá chego, e após o depósito de armas e bagagens e de um retemperador duche na Residencial Morgadinha… 
… o restaurante da Balbina.
Aí, como em qualquer outro ritual, apurar sempre o gosto único dos vegetais que compõem a salada que antecede a posta mirandesa; depois, enquanto se espera por mais, degustar a esplêndida alheira de Miranda, grelhada e que deixa a de Mirandela a perder de vista, a modos de aperitivo para a suculenta e apaladada posta de carne que, logo mais, vem para a mesa.
Sendo dia da semana, poucos eram os turistas que acorressem ao repasto nocturno. A dona do restaurante, enfastiada com duas turistas estrangeiras que não queriam mais do que uma saladinha, correu a acender a lareira quando surgiu a oportunidade de nos mostrar as coisas boas da terra, à mistura com dois dedos de conversa.
Por fim, um queijo com marmelada, ambos caseiros, ainda conseguiram encontrar um espacinho onde se encaixarem.
Romagem digestiva e elucidatória de toda a família ao monumento em honra de António Maria  Mourinho, esse homem cujo labor elevou o mirandês a língua oficial do nosso País… e a viagem continuará dentro de momentos.