Local: Biblioteca Municipal de Cascais, em São Domingos de Rana

Que me perdoem os convidados especiais, mas inicio a reportagem com um destaque aos fiéis companheiros destas jornadas, sem os quais, verdadeiramente, se esfumaria o interesse maior destes encontros. E ei-los, assegurando para espanto de incrédulos, uma sala cheia de poesia, em sexta-feira de outros eventuais apelos mundanos.

E, agora, os convidados, sim: David Machado, escritor de histórias encantatórias que a sua imaginação fez reais, estimulado por uma apresentação de João Paulo Sacadura, homem habituado nestas lides, mas de onde transparece uma imensa ternura pela Vida e que teve artes de nos envolver num passeio por reinos de encanto, assumindo o papel de locomotiva…

Da obra, já significativa, do jovem autor, demos conta. Corram, depressa, à procura dos seus livros! De quanto dele já li ficou-me uma impressão tão forte que mil argumentos me foram suscitados para outras tantas aventuras da escrita.

E se me torcerem o nariz porque de suposta «literatura infantil» se trata, terão de me explicar muito bem quais as fronteiras (etárias ou outras) do reino da imaginação e da criatividade… E, mesmo que a presuntiva explicação tenha fundamento, duvido que ela enevoe, sequer, o lúdico e desafiante percurso dos ambientes do David Machado.

De imediato, os alunos do 6º H da Escola Conde de Oeiras, ajudaram à festa, dando-lhe mais sentido e criando, pressurosos, essa ponte do presente de que o futuro é feito, para gáudio de todos e para quem, de súbito, a idade deixou de contar.

E uma vez e outra deu-se o passo, inventando ousadias, daquelas que também ajudam à descoberta.

De tal forma que, às duas por três, momentos há em que parece que alguns terão, na verdade, percepcionado um caminho novo, uma nova aventura, com sentido.

E, numa «aula» temporalmente tão comprida, nem surgiu perturbação ou desinteresse. Não houve, ainda, necessidade de fazer algum «zapping», buscando diversidades de oferta, pois elas estavam ali, ao alcance da mão e demais sentidos, manifestando-se em forma de partilha de seres e de saberes, nessa riqueza diversa que nos enforma.

Deste excelente naipe de vozes – e daqueles mais que, por uma razão ou outra, desta vez não puderam estar presentes – que conste ser a sua participação, porventura, a vitória maior de um tal espaço, bem como o incentivo mais forte para que se porfie sem desânimos.

Da Escola Conde de Oeiras, para além de Pais e de Professores – provando que nada está perdido – contámos com os Alunos Catarina Torres, João Sacadura, Francisco Sacadura, Diogo Patacão, Pilar Saramago, Madalena Morão, Sofia Araújo, Madalena Carvalho, Francisco Limão, Francisca Faria, Ana Alice Miranda, Maria Ana Teixeira e Mafalda Pereira e Margarida Vitorino (que fugiram da fotografia…).
Vêem? É que não está mesmo nada perdido, quando procuramos encontrar-nos.
*
O João Baptista Coelho, por falta de oportunidade, não nos levou à sessão o seu «trabalho de casa». Mas não descansou enquanto não o partilhou connosco:
ESBOÇO DE RETRATO
Sou animal inventado
sujeito a metamorfoses.
Primeiro, bicho danado
que traz consigo o pecado
e que o serve em altas doses.
Fiz-me, aos poucos, passarinho
que, ao sonhar com a distância,
ousou sair do seu ninho
e percorre, hoje, o caminho
da ambição e da ganância.
Asas longas de condor
mas com olhos de falcão,
pisei a palavra amor
e criei a própria dor
numa vida sem razão.
Sinto-me às vezes serpente
a rastejar pela terra,
tentando enterrar o dente
na fortuna de outra gente
e na íris que ela encerra.
Fui lobo mau, bem matreiro.
Neguei pão aos que o não comem.
E ao mirar-me por inteiro
mal olhei o meu dinheiro…
quis ser Deus… e nem fui Homem.
Fui carapau de corrida
nos anos da juventude.
Naquele tempo em que a vida
– quer fosse ganha ou perdida –
era usada em plenitude.
Já fui macaco sagui
e, o que é mais interessante,
um mimoso colibri
com patas de javali
e orelhas de elefante.
Ultimamente, gaivota
com penas de sabiá,
ao ir aí, ninguém nota
que ainda procuro rota
noite e dia ao deus-dará.
Pouco a pouco, devagar,
vou voltando ao meu covil.
Minhas asas de sonhar
queimou-as a luz solar
no tempo em que eu era Abril.
Hoje, velho e alquebrado,
vou ao sabor da corrente.
Que o tempo, quase esgotado,
matou o sonho dourado
do bicho que não foi gente.
Amanhã, talvez eu seja,
na paz que ainda me toca,
– esteja eu aonde esteja –
e em paga da minha inveja…
nada mais que uma minhoca.
Minhoca que lavra o chão
lentamente e sem clamor,
até que, sem ilusão,
e do silêncio de um grão,
da terra abrolhe uma flor!

– poema de João Baptista Coelho