(Já sei que ninguém vai ter paciência para ler este testamento.
Mas eu também não tenho paciência para muita coisa e tenho de me aguentar!…)
CARICATURA EM UM ACTO

Um gestor obtém uma licenciatura. Geralmente, pagam-na os seus “encarregados de educação” (as aspas são de propósito) e todos nós, através dos impostos.



O porteiro, geralmente, não é licenciado. Ou porque os seus “encarregados de educação” não tiveram posses para aguentar a parte da licenciatura que lhes cabia, ou porque as circunstâncias da vida assim o determinaram ou, mais prosaicamente, porque o homem não esteve para ali virado.

Assim, enquanto o futuro gestor passa o dia a estudar, marrando sobre matérias impingidas por um ensino universalmente reconhecido como desadequado das realidades e sem serventia ou aplicação prática, e bebendo uns copos à noite, o futuro porteiro tem um biscate numa loja de centro comercial de dia e, se tiver sorte e as tais circunstâncias da vida assim o propiciarem, será ele a servir, à noite, uns copos ao futuro gestor.



Neste momento da vida, o futuro gestor, bem como o futuro porteiro, mais não serão do que dois “pesos-mortos”, socialmente falando. Estão, apenas, a “gerir expectativas”. O primeiro, porque não está, ainda, por razões óbvias, inserido na chamada actividade produtiva; o segundo, porque, atarefado de biscate em biscate, ainda não aterrou numa entidade patronal que cumpra a lei, cumprindo, assim, as obrigações sociais e integrando-o, de facto e de direito, na tal actividade produtiva, de corpo inteiro, os descontos devidos… e a bem da nação.

Concluída a licenciatura, duas ou três pós-graduações, um mestrado e, porventura, um doutoramento, tendo-se munido, também – e pormenor não despiciendo – de um qualquer cartão de uma qualquer confraria mais ou menos clandestina (cartão esse devidamente repercutido num outro cartão partidário, preferencialmente da área do “centro”, mas com eventual flexibilidade para se chegar a uma franja), o futuro gestor é nomeado para assessorar uma qualquer empresa, de preferência daquelas em que o estado faz de conta que é dono não sendo, ou em que, de facto, é o dono, mas faz de conta que não é.



Nesta altura, o futuro porteiro, para além dos empregos acima, também já distribuiu publicações, andou nas vindimas em Espanha, foi servente na construção civil, foi talvez uma vez mais barman, fez de segurança de uma das empresas por onde anda a assessorar o futuro gestor, foi vendedor por conta própria, dedicou-se à pesca e faz, à noite, umas horas numa padaria. Actualmente e já com trinta e cinco anos, sem nunca ter descontado para a Caixa, nem ter declarado o IRS, nem pagar autárquica (pois ainda vive em casa dos pais, claro e só por isso…), decidiu empregar-se numa empresa que subaluga pessoas para funções comummente designadas como “menores ou braçais”. Encontra-se, actualmente e nesta conformidade, a desempenhar as funções de porteiro numa das empresas onde o tal assessor e futuro gestor assessora. Enquanto porteiro, o nosso homem aufere o salário mínimo e pagou um almoço aos amigos quando recebeu o primeiro recibo de vencimento com o primeiro desconto para a Segurança Social. Já fez as contas e sabe que para receber a pensão máxima, quando se reformar, terá de trabalhar até aos setenta e cinco anos, pelo menos.

Nesta altura, o nosso futuro gestor, com a mesma idade, já recebeu três viaturas topo de gama, enquanto assessor de outras tantas administrações, tem vários cartões de crédito e telemóveis, quatro seguros de saúde e tem sérias dificuldades em conseguir cumprir toda a complicada agenda de compromissos extra-laborais que a sua intensa actividade de assessor implica. Após uma recente remodelação ministerial, alguém lhe pede um exemplar detalhado do seu extensíssimo curriculum e vê-se nomeado administrador pela tutela, sem que se lhe conheça obra feita, para além da significativa redução de encargos que a sua sugestão, em relatório com apresentação em Powerpoint, de trocar o fornecimento de esferográficas por lápis originou num longínquo departamento de uma das empresas assessoradas.



Há já sete anos que o nosso porteiro é porteiro na mesma empresa. Gostaram dele, da sua prontidão e disponibilidade e por lá foi ficando. Ninguém passa por ele sem mostrar identificação e levar, em troca, uns bons-dias bem esgalhados. Já é da família. Mantém, no entanto, o seu vínculo laboral com a outra empresa que subaluga trabalho não-qualificado e continua, também, a auferir um vencimento mensal idêntico ao salário mínimo. Mantém o regime contratual a termo certo, ou a prazo, que vai dar ao mesmo, porque todos os anos há um mês em que deixa de ser porteiro e fica desempregado, mas com certeza de renovação de contrato dali a trinta dias. Mantém o biscate, à noite, na padaria. Está a pensar casar e até já anda com um andar em vista. Tem dificuldades em obter empréstimo bancário, quer pelos seus baixos rendimentos, quer por não ter emprego consistente.

Já o nosso gestor vai, nestes sete anos, no seu quinto cargo enquanto administrador. O seu curriculum já é digno da Torre do Tombo, embora não se lhe conheça obra feita ou responsabilidade assumida, até por falta de tempo para sedimentar o que quer que seja – o que não é, em qualquer caso, de sua responsabilidade. Na mais recente empresa onde tomou posse há coisa de dois meses, entregaram-lhe um prémio de produtividade simbólico de € 50.000 pelos bons resultados da mesma empresa no ano anterior, juntamente com um Jaguar de último modelo, um escritório remodelado e com tapetes persas, presumivelmente adequado à dignidade da função. Ontem mesmo, o nosso gestor soube que tinha sido reformado por uma outra empresa onde era administrador, com vencimento por inteiro e uma indemnização por ter cessado funções três horas antes de acabar o mandato, de cerca de € 500.000, conforme despacho do Conselho de Administração que ele próprio integra e onde o seu voto é determinante. Esta reforma não é incompatível com a manutenção dos demais cargos, podendo até manter, no futuro próximo, uma assessoria, talvez a “recibo verde” nessa mesma empresa, conforme se pode ler na respectiva nota interna.



Todos os dias, estes dois homens se cruzam à entrada da empresa. Nunca estes homens hão-de descruzar-se.

Perante isto, porque hão-de os vencimentos-base mensais destes dois homens ser diferentes? Somos um país realmente muito complicado…