As saudades impossíveis

texto de José Mário Silva

Poeta e editor-adjunto do suplemento DNA do Diário de Notícias

in 30 ANOS DEPOIS – O 25 DE ABRIL

VISTO POR JOVENS CRIADORES

TEXTOS DE 25 CRIADORES E ARTISTAS

JORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS – Nº 875, de 14 a 27 de Abril de 2004

No dia 25 de Abril de 1974, eu năo ouvi, vinte minutos depois da meia-noite, a «Grândola» do Zeca Afonso na Rádio Renascença, o som das botas a marchar, aqueles versos libertadores («o povo é quem mais ordena/dentro de ti ó cidade), o sinal de que algo se iria romper na ordem cinzenta de um país sufocado, a certeza de que o fruto podre de um poder podre haveria finalmente de cair por terra. No dia 25 de Abril de 1974 , eu năo escutei o primeiro comunicado do MFA, lido pela voz de Joaquim Furtado na antena do Rádio Clube Portuguęs: “Aqui posto de comando das Forças Armadas”. No dia 25 de Abril de 1974, eu năo vi os soldados da Escola Prática de Cavalaria de Santarém a ocuparem o Terreiro do Paço, nem a marcha das chaimites através das ruas da cidade, nem o cerco ao Quartel do Carmo, nem Salgueiro Maia, de megafone em punho apelando à rendiçăo de Marcello Caetano, nem o Presidente do Conselho a exigir a presença de um oficial de «patente năo inferior a coronel», nem a chegada do General Spínola (altivo como sempre, de monóculo e pingalim), nem a espera tensa da multidăo que ali se havia juntado, nem o silêncio que precede os grandes momentos da História, nem a bandeira branca da rendiçăo hasteada no quartel, nem a alegria irreprimível do povo já certo da vitória, nem a saída de mansinho da chaimite Bula (com Caetano e dois ministros lá dentro) enquanto o largo se enchia de um grito unânime: «Assassinos». No dia 25 de Abril de 1974, eu năo vi os verdadeiros assassinos escondidos atrás das janelas , na sede da PIDE, descarregando as armas sobre os manifestantes que enchiam a rua António Maria Cardoso, disparando a eito com a raiva da derrota, matando quatro pessoas e fazendo dezenas de feridos. No dia 25 de Abril de 1974, eu năo andei pelas avenidas de Lisboa, a saborear letra a letra, sílaba a sílaba a palavra Liberdade. Năo ofereci cigarros aos soldados, năo pedi um cravo para pôr na lapela, năo fotografei rostos eufóricos, năo fiquei rouco de cantar palavras de ordem, năo subi às estátuas para contemplar os rios de gente, năo guardei na memória, minuciosamente, cada segundo daquele que já era «o dia inicial, inteiro e limpo», cantado mais tarde pela Sophia.

No dia 25 de Abril de 1974 , eu năo escutei, nem vi, nem fiz nada disto por uma razăo muito simples: estava longe, em Paris. E tinha apenas, de idade, dois anos, um mês e 23 dias.

A minha memória do 25 de Abril, a memória da mais bela das revoluçőes, é por isso uma coisa construída pelas palavras dos outros, pelas imagens dos outros, pelo olhar de nostalgia dos outros. Eu năo fiz, eu năo vi, eu năo escutei. E tenho pena. É como se me tivessem roubado aquele dia de puro espanto. Aquele dia de que ainda hoje, quando desço a Avenida num ritual melancólico, sinto saudades.

José Mário Silva

Poeta e editor-adjunto do suplemento DNA do Diário de Notícias